Estou longe de Portugal e apenas tenho podido seguir as últimas semanas da nossa Arqueologia por interposta pessoa ou, outras vezes, por interposto blogue. Nem isso desvanece o sentimento de preocupação instalado que antes já me fez referir aqui temas que me são tão urgentes como a qualificação dos arqueólogos e a falta de institucionalização — nomeadamente no que respeita a uma certa imaturidade técnica e ética — deste sector profissional (para não lhe chamar "classe"). Já o disse, estes problemas da qualificação e institucionalização são para mim os verdadeiros embaraços com que hoje nos enfrentamos e deveríamos encarar bem de frente.
Sendo, reconhecidamente (!), desde há muito um forte crítico das Universidades portuguesas e desde há quase dez anos um (talvez) ainda mais forte crítico das nossas empresas de Arqueologia — porque também se pode ser objectivo quando olhando para o próprio umbigo — não posso deixar de reconhecer numas e noutras o essencial da massa crítica que talvez permita a sobrevivência próxima da Arqueologia portuguesa enquanto disciplina científica. Pelo menos, há seguramente mais esperança nas Universidades e Empresas do que num estado central em erosão rápida ou numa putativa tutela regional ainda insuficientemente sedimentada, seja em número, seja em autonomia, seja mesmo em qualificação técnica. Com efeito, Universidades e empresas de Arqueologia parecem hoje inevitavelmente destinadas a trilhar juntas aquele que talvez seja o mais profícuo caminho da Arqueologia portuguesa dos anos vindouros. Mais, de toda a evidência, a próxima parte deste caminho far-se-á à revelia (senão mesmo APESAR!) da acção e orientações do Estado.
Do outro lado deste percurso, deverá provavelmente surgir uma Arqueologia autonomizada da tutela da Cultura, ambiente cada vez menos propício ao desenvolvimento completo de uma disciplina científica — emancipada por completo do diletantismo original ou condenada a finar-se — que se quer capaz de responder a uma só voz às duas solicitações que o social lhe dirige:
- uma, a da gestão do território e salvaguarda do património (material e imaterial) histórico-arqueológico;
- outra, a do desenvolvimento do conhecimento científico; e,
- finalmente, a partir destas ambas, a devolução à sociedade de produtos de divulgação generalizada, estes sim já do âmbito da fruição cultural.
E porque empreenderiam Universidades instaladas e empresas balbuciantes um tal projecto comum que, desde logo dada a diferença de idades dos contraentes, tanto parece assemelhar-se a um casamento de interesse, um pouco contra-natura?
À primeira vista, poder-se-ia ver aqui apenas uma atitude de conveniência, uma reacção de sobrevivência.
Penso, porém, que talvez existam sentimentos mais profundos!
Do ponto de vista (de uma parte) das empresas portuguesas de Arqueologia, é certo que esta aproximação se vem tornando uma questão vital.
Por razões de diversa ordem:
- sem dúvida, porque o contacto prévio com jovens estudantes permitirá a essas empresas alargar o seu universo possível de recrutamento com base em critérios mais objectivos de qualificação e competência;
- sem dúvida porque sem esta colaboração inter-institucional não poderá garantir-se a exploração cabal do espólio e informação arqueológica de que essas empresas são hoje fieis depositárias;
- mas também porque o aumento subsequente da sua própria massa crítica com o influxo de conhecimentos resultante destes contactos e a participação activa em projectos de investigação fundamental são hoje parte decisiva da estratégia de afirmação social destas empresas (e, já agora, da própria Arqueologia portuguesa).
Do ponto de vista das Universidades, que surgem cada vez mais sensíveis e mesmo decisivamente empenhadas nesta aproximação, as vantagens não são menos importantes. Naturalmente — e é isso que torna o movimento possível —, os seus objectivos são correlativos e complementares dos das empresas:
- antes de mais, de modo muito simples e directo, a empregabilidade dos seus estudantes, actualmente condição objectiva de sucesso no imediato;
- depois, o acesso a colecções dotadas de informação contextual e procedentes de intervenções arqueológicas recentes, sem as quais será progressivamente mais difícil defender a qualidade do ensino numa área tão sensível à prática como a Arqueologia;
- ainda a possibilidade de captação de fontes financiamento, seja de forma directa ou indirecta, e de que beneficiarão os seus projectos científicos ou os seus alunos; e, finalmente,
- porque não admiti-lo também, a vantagem do contacto com um meio em que a produção e utilização do conhecimento em unidades independentes de I&D se faz de um modo muito ágil e elástico — Claro, isto porque penso que é para unidades deste tipo que penso que devemos fazer evoluir as nossas empresas de Arqueologia (!!!); de resto, nem se trata de um movimento particularmente original: vejam-se os sectores da farmácia, da informática, etc.
Mas os benefícios desta cooperação inter-institucional não se esgotam ainda em vantagens das Empresas e das Universidades.
Assim de repente:
- do ponto de vista dos alunos, o acesso facilitado aos empregadores potenciais, a experiência pré-profissional; e
- do ponto de vista do Estado, o aprofundamento do conhecimento científico e da salvaguarda útil do património histórico-arqueológico, o reforço do tecido empresarial, o aumento da participação social das Universidades, o desenvolvimento técnico, científico e económico do sector, etc.
Obviamente, as modalidades desta cooperação estão já contidas nos objectivos descritos para cada um dos interlocutores: colaboração pedagógica a diferentes níveis; enquadramento técnico, científico e profissional dos formandos; acolhimento de alunos em meio empresarial; partilha de projectos de investigação fundamental e de investigação aplicada em Arqueologia; projectos de divulgação científica; financiamento de mérito académico; mecenato científico.
Porém, este seria um mundo idílico se não devêssemos também reflectir acerca das condições necessárias para a realização deste caminho a partilhar entre Universidades e Empresas.
Refiram-se, de forma seca e muito directa, apenas as três fundamentais: reconhecimento mútuo, abertura das Universidades e Institucionalização das Empresas.
E como estamos de realização actual destas três condições indispensáveis?
A minha percepção pessoal é de que estaremos talvez ainda no início, mas já decisivamente a caminho.
A progressiva abertura da Universidade é em Portugal um fenómeno evidente, que tem no campo específico da Arqueologia uma explicação dúplice:
- por um lado, esta abertura constitui hoje praticamente condição de sobrevivência dos organismos universitários (a avaliação de centros universitários de I&D e o espírito voluntarista de Bolonha, fomentando a mobilidade curricular e inter-universitária, assim o determinam);
- por outro lado, não pode deixar de admitir-se que só agora e ainda assim de forma bastante hesitante surgem unidades empresariais decididas a (e capazes de!) suportar este esforço de colaboração.
Penso, contudo, que o maior risco de falhanço desta aventura estará do lado das empresas, mais jovens, quiçá mais emotivas, mas seguramente menos constantes e resistentes.
Como disse, é ainda muito escasso o número de empresas com estrutura institucional e massa crítica suficiente para responder a um desafio tão exigente.
Compreenda-se: este desafio implica dimensão institucional para receber e enquadrar os formandos; mas também capacidade económica para suportar os custos da sua formação e os custos dos projectos de investigação a desenvolver em colaboração; mas também capacidade científica para co-dirigir estes projectos e co-orientar cientificamente os formandos.
Uma perspectiva rápida sobre o panorama geral actual das empresas portuguesas de Arqueologia não deixará de revelar uma fotografia bastante preocupante quanto ao número de unidades empresariais com capacidade ou sequer com vontade de garantir estes índices de institucionalização, capacidade científica e investimento em formação e I&D.
Não obstante, penso que não existe outra alternativa senão obrigar as ditas empresas de Arqueologia a dar o salto em frente que lhes permita responder afirmativamente ao desafio que lhes lança o momento actual.
E só há um método para fazê-lo: exigir qualidade, sancionando simultaneamente as falhas, técnicas e éticas.
Repito uma ideia recorrente: existe ainda uma diversidade talvez excessiva da qualidade dos trabalhos (e das empresas!) de Arqueologia preventiva / de emergência em Portugal.
A tendência de futuro não poderá deixar de ser no sentido da redução desta diversidade, de resto, tal como nos ensinam experiências semelhantes (e nefastas) noutros países.
Cumpre-nos a nós todos impedir que um mercado desregrado seleccione organismos empresariais menos capazes e menos qualificados, em desfavor de empresas mais preocupadas com a qualificação técnica dos seus trabalhos e a produção de conhecimento.
Actualmente, a aproximação entre Universidades e empresas de Arqueologia não passou ainda das intenções.
O transcurso do tempo dirá se destas intenções mais ou menos manifestas resultaram apenas alguns arrufos inconsequentes ou, pelo contrário, relações mais duradouras e frutuosas.
Como no amor, estas não dependem apenas da boa vontade inicial dos pombinhos, mas sobretudo da sua capacidade de cedência mútua e da partilha de projectos comuns... Ah, e já agora, dependem também bastante da envolvência social dos parzinhos de apaixonados.
2008-03-26
Há uma saída possível na colaboração inter-institucional entre Universidades e Empresas?
Temas:
Arqueologia,
Empresas,
Formação,
Profissão
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5 comentários:
Mais um monólogo, e com tantas palavras bonitas.
Pura masturbação intelectual.
Mais um longo e denso monólogo.
De boas intenções está o inferno cheio. Eu por alguma experiência própria não confio nas empresas de arqueologia nem nos arqueólogos municipais. E acreditem tenho boas e abundantes razões para isso. Se por um lado a função da empresa é ganhar dinheiro, já os arqueólogos camarários, na sua grande maioria, apenas fazem o que os seus presidentes lhes mandam fazer. A arqueologia e o património, assim como a ética profissional deitados às "urtigas". Chamem-me o que quiserem, mas eu penso que a melhor forma dos arqueólogos actuarem ainda é, salvo outra modalidade que desconheço, estarem dependentes do poder central ou descentralizado.
Aguardo pelas pancadas.
Confesso que depois de ler o primeiro comentário à mensagem do Miguel Almeida, ontem à noite, tive de me conter para não responder imediatamente, com as frases curtas e concisas que me pareceram então mais adequadas.
É o exemplo perfeito da atitude que nos conduziu à situação presente e que nunca nos tirará dela: a falta de coragem e de frontalidade para sair de um anonimato desresponsabilizante; a ligeireza na atribuição de rótulos e no levantar de processos de intenção a quem resolve partilhar claramente o seu pensamento; a falta de argumentação para debater consistentemente o conteúdo das posições expressas.
Enfim, só não é deprimente porque espero que cada vez mais de nós saibam caminhar no sentido da participação construtiva e sem preconceito.
Queria dizer ao Jorge Raposo e a toda a gente que o primeiro comentário não é meu, como parece ser de alguma forma sugerido no 3º comentário.
O problema é que toda a gente partilha o pensamento há anos, com belos textos (que roçam o narcisismo) e belas ideias (já gastas e nada originais).
Fazer alguma coisa, traçar um objectivo e tentar cumprir, isso já é mais dificil.
Estamos a falar de gente com a faca e o queijo na mão.
Continuem a imaginar como é que as coisas podiam ser (os pombinhos apaixonados), entretanto o IPA já foi, as empresas continuam a fazer concorrência desleal, os professores universitários a escrever poesia, enfim uma grande festa.
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