2008-02-28

Do tempo dos heróis à vida de avestruz, sem passar pela dura realidade

Pensara resumir por esta altura algumas ideias fundamentais para a discussão que a Al-Madan nos propõe enquanto comunidade.
Tenho agora de facto sob os olhos uma folha muito branca cheia de gatafunhos e setas em todas as direcções, mas, a natureza intrinsecamente dialógica deste suporte não se compadece; aconselha mais depressa que acompanhe a dinâmica das intervenções precedentes.

Estaremos provavelmente quase todos de acordo em considerar genericamente como “crítico” o momento actual — nem nisto há nada de muito novo, no quadro da Arqueologia errante de um país em perpétua crise.
A dificuldade não estará no diagnóstico do estado da nossa arte: de tão evidentes que são os problemas, este(s) diagnóstico(s) pode(m) agora resumir-se ao relato de pares aparentemente infindos de casos reais com que todos chocamos quotidianamente mais ou menos de frente e cuja multiplicação por essa Arqueologia fora vai transformando o que antes apenas era suspeição de desgraça numa evidência de dimensões paquidérmicas.
Não insisto.

Pelo contrário, perturba-me sempre um certo timbre muito tipicamente nosso, como que a meio caminho entre o partizanismo e a nostalgia de um tempo que… nunca foi.
Trata-se de uma perspectiva com tanto de boas intenções (ou emoções), como de consequências nefastas.

Obviamente, esta perspectiva resulta (1) da vontade de reagir a uma situação considerada negativa (2) num quadro geral de incapacidade de acção resultante de um deficit de estruturação do sector que ultrapassa em muito a dimensão das questões que agora são objecto de críticas e investidas do momento.

Porque digo que os problemas actuais são maiores do que as queixas que fazemos?
Porque são estruturais. Desde logo, porque consistem antes de tudo no estado presente de uma classe profissional (/técnica, /científica, o que se queira!) cuja qualificação técnica é muito díspar e, sobretudo, é em média profundamente insuficiente.
Depois, porque a classe desqualificada que somos produziu um ambiente inconsistente, instável, onde erram entidades — públicas, privadas e individuais — cuja trajectória não é sempre coerente (de um ponto de vista técnico), e nem sequer é muitas vezes inteligível pelos outros actores do drama.

E qual é o impacto desta situação estrutural nas queixas que estamos a fazer (dir-se-ia: que fazemos repetidamente de cada vez que se torna um pouco mais óbvia uma destas “crises” repetidas que, afinal, são sempre a mesma)?
Bom, provoca a falta de um referencial que nos permita transformar a vontade de agir em actos consequentes, à boa e velha maneira — Reflexão… Acção! —, que é o que urgiria fazer.
O que sobra? O espírito de luta e de missão?
Mas… Seremos ainda valorosos evangelizadores?
Esse papel social interessa à Arqueologia.pt de 2008?

Penso que não: não só a imagem me surge um pouco anacrónica — relembre-se, “já não há ideologias” —, como nem sequer penso que esta imagem de envolvimento pessoal com a causa represente uma mais-valia na sociedade actual, dialéctica, onde, pelo contrário, a “missão” pode ser mesmo um obstáculo à comunicação.
Não me vejo com veia de pregador e, por mais que inevitavelmente me ferva o sangue, não me proponho a lutas. Não por indisposição natural, mas porque essa não é a solução para o problema actual, que requer mais trabalho laborioso do que acções valorosas. Mostra o passado que por detrás dessas lutas escondemos frequentemente uma maneira muito própria de fazer de avestruz: permite-nos manter em alta os índices de auto-confiança do grupo (auto-proclamado defensor do património), até passar a borrasca maior, sem atacar os verdadeiros problemas. Os tais, estruturais, da qualificação técnica e ética, dos objectivos e da organização fundamental da actividade.
É nestes problemas que reside a dura realidade. São estes que exigem o nosso trabalho laborioso, sem o qual não conseguiremos pôr-nos de acordo em relação a qual dos “tempos que nunca foram” deveríamos voltar. Eis!

2008-02-27

Onde estamos: no 1º ou no 3º mundo ?

Infelizmente, por absoluta falta de tempo, não pude ainda participar neste blogue, como desejaria já ter feito. Todavia, não quero deixar de felicitar todos os participantes pela qualidade das reflexões que têm produzido.
O último texto do ACS é especialmente interessante pelo retrato, a meu ver fiel, que faz da triste situação por que passamos em matéria de estrutura central do Estado na área do Património Cultural.
Concordo inteiramente.
Mas surge-me a pergunta: de quem é a culpa ? Dos políticos de turno ? Do séquito que os rodeia ? Daqueles de nós que, como o ACS, aceitam jogar o jogo por dentro, ainda que rapidamente fiquem desiludidos ? Dos que, como eu talvez, procuramos ficar sempre por fora, na esperança de assim vermos melhor e mantermos uma liberdade porventura diletante ? Das classes corporativas no seu todo, neste caso dos arqueólogos em geral ?
Penso que a culpa é de todos e cada um, na sua medida. Mas é sobretudo uma culpa colectiva, de uma sociedade que, parafraseando Almada Negreiros, há muito inventou já todas as frases que a poderiam salvar… e que apenas falta ser salva.
Aquilo que nos falta é darmos o salto que nos habilite a passar do 3º para o 1º mundo.
Aquilo que nos falta é “sociedade civil”.
Não me resigno à fatalidade apregoada, entre outros, por Vasco Pulido Valente, quando diz que uma classe média autónoma e não subsídio-dependente sai cara, nunca a tivemos desde o século XIX e talvez nunca a tenhamos.
Não me resigno, mas reconheço que assim é.
Procuro manter algum espírito republicano. Penso que muito mais importante do que aproveitar as circunstâncias (o amigo do amigo, precariamente instalado no Poder) para tentar “fazer obra”, quer dizer, mudar as coisas por cima, muito mais importante do que isto, é combater para que se criem estruturas credíveis de partilha de poder.
Foi esta a linha de pensamento que levou a que durante anos tivesse lutado pela criação de um Conselho Superior de Arqueologia – o que nunca consegui, até porque a maior parte dos meus colegas arqueólogos sempre se dividiram em dois campos: os da sombra, aqueles que estão sempre à porta do poder, pressurosamente dispostos a sacrificarem-se pela causa pública; e os do sol, aqueles que confiam em vanguardas triunfantes, desde que se sejam as suas, e privilegiam o golpe (putch) como forma de transformação social. [curiosamente, aquilo que não conseguimos na arqueologia, quase viemos a conseguir nos museus, com a criação de um Conselho de Museus, que nunca funcionou porém, porque foi extinto antes de se ter reunido pela primeira vez].
… E assim chegámos aqui. Cabisbaixos e tristes, como antigamente. Com um poder político tão ou mais discricionário do que antigamente. Com obras de regime. Com um mundo virtual a girar em volta do poder e um mundo real que sentimos todos os dias… Enfim, tão terceiro-mundistas como antigamente.
Continuo a acreditar que a mudança é possível. Mas por baixo. Faz-nos falta um sobressalto cívico, que poderia talvez ser dado através de uma plataforma das associações do sector, plataforma destina basicamente a intervir junto do Governo, do Parlamento e dos Partidos Políticos para reclamar a efectiva constituição de instrumentos e órgãos de participação activa da sociedade na construção da políticas patrimoniais.
Pelo meu lado, estou disponível.

O PATRIMÓNIO E O ESTADO, OU O ESTADO DA ARQUEOLOGIA?

Obviamente, e como vai sendo habitual, os últimos sobressaltos verificados entre a "classe arqueológica" estão directamente relacionados com as alterações provocadas por mais uma "reestruturação do Ministério da Cultura". Acontece que, ao contrário de outras "reestruturações" a presente se inscreve num plano mais abrangente da chamada "reforma do Estado" com implicações que, naturalmente, vão muito para além dos problemas da Cultura, quanto mais do "Património" ou da própria "Arqueologia". Não é pois possível debater ou analisar as dificuldades ou problemas destas áreas específicas, ignorando a tremenda revolução (alguns chamarão de contra-revolução) que atravessa actualmente toda a Administração Pública. Como primeiro contributo para essa contextualização, ainda que os problemas ou as situações abordadas possam pecar por algum "regionalismo" e por extravazarem as questões arqueológicas, gostaria de divulgar, com a devida vénia, dois textos (de autoria desconhecida) recentemente publicados num Blog de Évora muito popularizado e sobretudo muito frequentado (http://maisevora.blogspot.com) blog que,não raro, aborda questões do foro cultural e patrimonial.


ACS


O "CASO DA FIGUEIRA DAS PORTAS DO RAIMUNDO"

O arrufo entre a Câmara Municipal de Évora e a novel Direcção Regional de Cultura do Alentejo, a propósito da partilha de responsabilidades na manutenção das muralhas de Évora, não passaria disso mesmo, de um anedótico “arrufo entre compadres políticos” se o caso não fosse a ponta do iceberg do que é hoje o atoleiro da gestão da coisa pública, no caso em particular, da gestão dos bens culturais património do Estado. Infelizmente, os problemas com o património, como já se alertou neste blog, vão muito para além das vetustas mas ainda sólidas muralhas da nossa cidade, não tendo ainda extravasado para a Praça Pública (afinal com a excepção da “figueira das Portas do Raimundo”...) porque os gravíssimos problemas do desemprego, da saúde, da educação ou da justiça, são mais do que suficientes para irem enchendo as páginas dos jornais e esgotarem, afinal, a paciência dos portugueses.

Que esconde, pois, a polémica da pobre “figueira”?

Ao afã “reformador” do actual Governo, sempre com o fito omniproclamado de “reduzir a pesada máquina do Estado” e, teoricamente, diminuir a “despesa pública”, não escapou, como se sabe, o Ministério da Cultura, apesar da “máquina”, neste caso, com os seus menos de 0,5% do bolo do OGE, ser mais um “brinquedo do que uma máquina”... Mas, mesmo que a economia seja ridícula, há que dar o exemplo, nem que seja à custa da desarticulação das estruturas que, paulatinamente, foram criadas nas últimas décadas, muitas por iniciativa de figuras conhecidas, então Ministros ou Secretários de um qualquer Governo PS ou Bloco Central e que hoje das bancadas do Parlamento assistem impávidos e serenos ao desmantelamento em curso. Mas adiante, se é para reformar, reforme-se de alto abaixo, e apesar dos riscos da cacofonia comece-se até pela AgriCultura e pela Cultura. Se no caso da “agrária” o Governo actuou mais como “agente funerário” face aos avançados sintomas de rigidez da vítima, no caso da “Cultura, Cultura” terá sido contratado um “cirurgião estético”, com queda para o “corte e costura”. Corta-se aqui, junta-se acolá, umas pitadas de copy and paste jurídico quanto baste para fazer umas leis orgânicas, a ajuda de um mapa das NUTs para retalhar o país e aí temos, num ápice, a ex-Ministra a anunciar em cerimónia no CCB a grande Reforma da Cultura, assumindo convicta e como grande feito pessoal, ter poupado aos cofres do Estado só em cargos de dirigentes superiores e intermédios 20 e tal por cento... Esqueceu-se de referir que os tais 20% de dirigentes a menos, todos eles funcionários públicos (antigos ou recentes), regressaram rapidamente aos serviços de origem (?), promovidos sem excepção ao “topo de carreira”. Feitas as contas, a economia não era afinal tão óbvia, mas em compensação, tinha um Ministério virado do avesso, em coma induzido, com excepção para os devaneios novo-riquistas da exposição do refugo do Hermitage e para a habitual “roda das cadeiras” que estas situações sempre proporcionam. Os funcionários, por sua vez, entre a sempre excitante azáfama da troca de “cabeçalhos, carimbos e envelopes”, esforçavam-se por descobrir na leitura atenta do Diário da República, se o novo modelo tirado da cartola do PRACE era “centralista”, “regionalista encapotado”, ou, mais grave ainda, se não era uma coisa nem outra. Se no caso da Ministra, as consequências da “Reforma” (talvez mais a da Saúde do que a da Cultura) parecem ter já dado resultados práticos, com o seu despacho prás origens, já no que ao Património Cultural diz respeito, (desde sempre apregoado como “prioridade das prioridades” de todas as políticas culturais, da direita à esquerda), vive-se ainda na expectativa dos resultados da complexa cirurgia, uma vez que o paciente parece ainda não ter acordado da já longa anestesia. Extinguiram-se o IPPAR, o IPA e, por atacado, a Direcção Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais. Em substituição, foi criado o IGESPAR que absorveu os serviços centrais do IPPAR, a totalidade do IPA e o que restava do núcleo lisboeta dos Monumentos Nacionais. A nível regional, as tão discretas como inócuas Delegações do Ministério da Cultura, foram promovidas a Direcções Regionais de Cultura, (dirigidas agora por um Director Geral vezes cinco...) absorvendo as antigas Direcções Regionais do IPPAR e o que restava dos serviços regionais dos Monumentos Nacionais. À primeira impressão, dir-se-ia que a “regionalização” rejeitada em referendo, se concretizava afinal na gestão e salvaguarda do Património Cultural e em vez de um IPPAR, passávamos a ter 1 mais 5. No entanto, uma leitura mais atenta, permitia afinal outras conclusões. A estratégia visava, de facto, o “retalhe” do património cultural do Estado, restando saber com que objectivos. Mas, a meio do processo, talvez já demasiado tarde, alguém “borregou”, parindo com a brusquidão da travagem um verdadeiro “aborto administrativo”. Consumava-se a desarticulação da estrutura regional do IPPAR, tão penosamente construída ao longo de duas décadas, mas em contrapartida, apesar da autonomia e da promoção hierárquica das novas estruturas regionais, sonegava-se-lhes toda e qualquer competência decisória em matéria de salvaguarda do património, competência que se mantinha afinal, no novo e liofilizado IGESPAR, acantonado no Palácio da Ajuda. Como imbróglio administrativo, era difícil ter arranjado melhor, continuando apesar das reformas, o dispendioso e moroso corrupio de processos, da periferia para o centro, para recolha de despachos e assinaturas agora com uma agravante de peso. Não havendo precedência hierárquica entre os diferentes serviços, acabaram as delegações de competências e a simples autorização para instalar um toldo numa zona de protecção, depende da “instrução técnica” a nível regional e da “decisão”, a nível central. Como “SIMPLEX” não está mal, a não ser que, conjugado com o encurtamento dos prazos processuais dos licenciamentos, outra medida “SIMPLEX”, o objectivo seja reduzir, rapidamente e em força, a protecção e a salvaguarda do património à lógica do “licenciamento tácito”. O que vale é que eu não acredito mesmo em “teorias da conspiração”...

Infelizmente não se ficou pela balbúrdia dos circuitos burocráticos, a “obra” que a Ministra deixou no Ministério. Ao IPPAR estava atribuída por lei, a gestão de largas dezenas de monumentos classificados, propriedade do Estado, uma pesada herança pública resultante não apenas das vicissitudes da História, entre as revoluções liberais e republicanas, mas também de aquisições recentes, particularmente no domínio dos sítios arqueológicos. Se há obra reconhecida ao IPPAR na última década, ela prende-se com o desenvolvimento de importantes projectos de valorização de monumentos, graças aos fundos comunitários, ainda que nem sempre tenha sido possível consolidar, a respectiva gestão, dados os crónicos problemas de orçamentação corrente. Ora, esta Reforma, transferiu os Palácios do IPPAR para o IMC (o Instituto que resultou da fusão dos Institutos dos Museus e do Restauro) numa tentativa de minorar os ainda mais graves problemas orçamentais dos Museus ainda que complicando a situação do novo IGESPAR (Tratou-se de aplicar o conhecido método de “puxar a manta” para combater o frio, cobrindo a cabeça mas destapando os pés…). No IGESPAR ficavam apenas as “jóias e os ossos da coroa”, ou seja, os monumentos “Património da Humanidade” (Jerónimos/Belém, Alcobaça, Batalha, Tomar e Parque Arqueológico do Côa) e os afectos a Panteão Nacional (Santa Engrácia e Santa Cruz de Coimbra…). Os restantes, dependentes de identificação em “portaria” a publicar “a posteriori”, seriam entregues à gestão das novas Direcções Regionais de Cultura. E aqui, estamos finalmente a aproximarmo-nos do cerne do problema da “Figueira das Portas do Raimundo”. Com efeito, a necessidade da “Portaria” não tem uma explicação meramente burocrática. Durante anos a fio, desde o IPPC até ao IPPAR, nunca o Ministério da Cultura conseguiu estabelecer uma lista definitiva, dos monumentos que estavam à sua guarda. Não apenas por culpa própria mas, sobretudo por dificuldades inexplicáveis da própria Direcção Geral do Património do Estado. A título de exemplo local, refira-se que o Templo Romano (ou de Diana como é conhecido) aparece nalgumas das referidas listas, quando tudo leva a crer, pela sua conhecida funcionalidade como “açougue” até ao Século XIX, que deverá ser património municipal. Exemplos como este multiplicam-se um pouco por todo o país, e se na maior parte dos casos não havia dúvidas quanto à afectação dos monumentos, assumindo o IPPAR a respectiva gestão, manteve-se sempre uma certa área de penumbra administrativa congregando casos duvidosos, por vezes envolvendo monumentos importantes, cuja conservação, por “exclusão de partes”, era assegurada pelos “Monumentos Nacionais” (refira-se só em Évora, e para além das muralhas, as Igrejas de São Francisco e Santo Antão). E, com efeito, pese embora o esvaziamento de meios a que vinha sendo submetida nos últimos anos, a quase centenária Direcção Geral, graças à experiência dos respectivos quadros e a alguma agilidade prática (ainda que nem sempre muito avisada), numa estreita articulação com as autarquias e outros serviços da Administração Pública, com a própria Igreja e até com instituições privadas, ia-se ocupando da respectiva manutenção. Refazendo telhados levantados pelas intempéries, refechando vãos abertos à chuva, refazendo ou consolidando troços de muralha que ameaçavam cair sobre o casario, enfim, tratando das “pequenas mas numerosas figueiras” que crescem todos os dias num património que precisa de manutenção regular, sob pena de atingir graus de degradação irreversível. Uma tarefa quase invisível mas fundamental mas que com a respectiva extinção, ninguém sabe quem irá assumir. De facto, no caso da DGEMN não se pode falar sequer de “fusão”. Parte dos serviços, incluindo o seu excelente Inventário do Património Arquitectónico e o valioso arquivo histórico associado, foram inexplicavelmente absorvidos pelo Ministério do Ambiente. E, salvo uma ou outra absorção de pessoal técnico, não houve qualquer preocupação em transferir as respectivas tarefas e muito menos, os meios que garantissem a continuidade das suas imprescindíveis missões. Daí a, à primeira vista estéril, polémica entre a DRCALEN e a Câmara Municipal de Évora a propósito das muralhas de Évora.

Finalmente, a tal Portaria foi publicada no Diário da República em 20 de Dezembro passado, mas para espanto de quem trabalha nestas coisas, a lista oficial, em especial no que respeita ao Alentejo, só veio aumentar ainda mais a confusão. Da quase meia centena de monumentos que dependiam do IPPAR só no Alentejo (entre Igrejas, castelos, conventos, sítios arqueológicos…) apenas foram listados 7, desaparecendo da lista imóveis como as Ruínas Romanas de Torre de Palma em Monforte ou a Gruta do Escoural; O Mosteiro da Flor da Rosa ou os Castelos de Elvas e da Amieira; as Sés de Elvas e de Évora; os Castelos de Terena, de Viana do Alentejo e de Montemor-o-Novo; o Castro da Cola, em Ourique, o povoado pré-histórico das Mesas do Castelinho, em Almodôvar, etc… etc… A situação revela-se tão ou mais absurda, quando se sabe que alguns dos monumentos “esquecidos” têm ainda projectos de valorização em curso e alguns, ainda que poucos, pois esse é um dos seus problemas crónicos, têm mesmo pessoal que lhes está afecto. Perante semelhante trapalhada, e na incredulidade de um qualquer acto deliberado de lesa património, só resta a explicação da “incompetência”, infelizmente hoje cada vez mais comum na Administração Pública. Mas já lá vão quase 3 meses após a publicação e não houve ainda um comentário oficial, uma explicação e muito menos a urgente correcção de tamanho disparate. Em todo o caso, valha a verdade nua e crua, a capacidade das novas Direcções Regionais, virem a assegurar um mínimo de manutenção aos bens culturais do Estado, listados ou não, é infelizmente uma distante miragem. Com efeito, as novas Direcções Regionais com as reduzidas verbas de investimento hipotecadas à conclusão de projectos co-financiados e orçamentos de funcionamento que não chegam sequer para os vencimentos, vêm-se totalmente impotentes para responder às mais elementares necessidades da manutenção corrente desses bens patrimoniais. E muitos desses monumentos, por falta de conservação nos últimos anos, estão hoje a atingir perigosos níveis de degradação que, ou se tornarão rapidamente irreversíveis, ou exigirão a médio prazo, investimentos incomportáveis. É grande parte da herança cultural que compete à nossa geração conservar e transmitir às gerações futuras que, um século e meio depois dos dramáticos apelos de Alexandre Herculano e quase cem anos depois de políticas intervencionistas do Estado de salvaguarda dos Monumentos Nacionais ou do Património Cultural Público, se encontra afinal em grave risco desaparecer. E tudo isto, perante uma Administração Pública que para além de falida e incompetente se revela, sob os mais variados pretextos, cada vez mais permissiva. Quem pode responder, por exemplo, ao que se passa com a “conservação” das dezenas de monumentos nacionais e respectivos recheios patrimoniais, em boa hora ainda que nem sempre com a mesma qualidade, transformados pelo Estado em “Pousadas” e hoje praticamente vendidos (?) a um grupo privado? Foram devidamente acautelados e salvaguardados, nos respectivos contratos, os valores histórico-patrimoniais em causa?

Perante uma situação tão grave e de abandono tão generalizado dos bens públicos patrimoniais, o ambiente começa até a ser propício a situações que ainda há pouco nos pareceriam ficção. Afinal já pouco deve restar - os indícios estão já aí às portas da nossa própria cidade - para que, a exemplo do que se passa com o desbarato dos bens públicos em geral, para proveito sempre da mesma oligarquia conluiada com o poder (e de que tanto se tem falado ultimamente a propósito de “corrupção”), sob pretexto do da sua “recuperação e restauro” venhamos assistir, indignados mas impotentes, à apropriação privada e para fins especulativos, de bens histórico-culturais do domínio público.

in maisevora.blogspot.com



UM COMENTÁRIO


Primeira questão: As leis novas e o novo figurino de gestão do Património

Goste-se ou não se goste (para mim a questão não passa essencialmente por aí - ou não passaria, se esta gente soubesse o que anda a fazer), as fusões aconteceram. Ponto positivo: Conseguiu-se acabar com a situação DGEMN versus IPPAR, o que até agora fora quase impossível porque a DGEMN era um lobby poderoso. E não fazia sentido dois organismos em dois ministérios diferentes a fazer basicamente a mesma coisa, duplicando custos em inventários, a fazerem os dois obras, e a confundirem genericamente as entidades externas que não sabiam com quem tinham que lidar. O problema é que não se fez isto para racionalizar mas sim para poupar custos. Para além disso, na fase de formulação das leis, cada um puxou para o seu lado, logo o resultado final foi uma pessegada. Vejamos: o mal não era a DGEMN, considero é que faz muito mais sentido que estas questões se centralizem num único ministério – e que esse ministério seja o da Cultura, já agora. O IPA não era tão problemático, pois tinha funções mais definidas, embora espartilhasse um pouco o pensamento – ficavam de fora as questões de conservação e salvaguarda e creio que é preferível pensar o Património como um todo, desde a investigação até à apresentação dos sítios ao público. Mas, de qualquer forma, era menos problemático – embora, também no IPA, houvesse mais um inventário – e vão três!!!, com os gastos inerentes. A minha interpretação do que aconteceu é esta:
Decisão: fundir, descentralizar e poupar. Assim, cria-se um organismo: o IGESPAR, que fica a funcionar em Lisboa, e, nas regiões, pega-se nas antigas Delegações do Ministério da Cultura, com competências na área do apoio à criação cultural, dá-se-lhes as competências do património regionalizado e concretiza-se, se não uma regionalização, ao menos uma efectiva descentralização, criando as Direcções Regionais de Cultura. Até aqui, perfeito!

A dura e triste realidade: os lobbies agitam-se, sobretudo em Lisboa ninguém está contente. Do lado do IPPAR: «Isto é uma chatice, vamos perder poderes para as regiões, eles vão fazer asneiras, pois nós é que sabemos pensar e isso não pode ser! Mas o principal é perdermos poder, isso não nos interessa nada. Por outro lado, com este modelo, a estrutura do IPPAR não tem qualquer justificação, o IGESPAR deveria ser uma estrutura muito mais leve, até poderia nem ser um Instituto e ser apenas uma Direcção Geral, o que implicaria cortes drásticos de pessoal (não sei se eles se preocuparam com isso ou só com a perda de poder, mas o resultado é o mesmo). Por isso, vamos para uma lei que nos garanta todos os poderes que detínhamos, e o pessoal nas regiões fica lá a trabalhar, mas as decisões são sempre nossas». Ou seja, em vez de o IGESPAR se preocupar com funções de coordenação global, definindo orientações, estratégicas e normas a nível nacional e uma equitativa distribuição de verbas para serem aplicadas nas regiões, fica com o poder todo decisório e os assuntos e processos têm que ir todos ao IGESPAR para a decisão final. Com a agravante de se tratar, agora, de organismos distintos, tendo as chefias estatuto idêntico – os Directores Regionais e o Director do IGESPAR são todos Directores Gerais – mas em que as Direcções de Cultura dependem do Parecer do IGESPAR. Na prática e até ver, a independência nas regiões piorou, pois não há delegação de competências para as Direcções Regionais, como havia, para certos casos, entre o IPPAR central e as suas Direcções Regionais.

Do lado da DGEMN: «Isto é uma chatice, querem acabar connosco mas, pelo menos, não nos levam o inventário! Por isso, como uma parte das competências da DGEMN passa para o IHRU, o inventário vai connosco e é nossa a competência para o gerir! E o arquivo da DGEMN, no Forte de Sacavém, também fica connosco no IHRU». Logo, não sei o que vai acontecer a todos estes inventários que nós temos, mas supostamente será o IHRU que centralizará a questão do inventário – fora do Ministério da Cultura!

Em suma: produziu-se um híbrido, que não é uma coisa nem outra! Diz quem leu as leis, juristas incluídos, que elas não são passíveis de serem articuladas, mesmo com a maior das boas vontades, que é o que não existe. Conseguiu-se, assim, o MILAGRE de fazer uma descentralização em que o nível de autonomia regional foi brutalmente diminuído. Por outro lado, neste ano que passou até saírem as leis, em que já se sabia das fusões, ninguém fez contas dos custos que isso implicaria. Porque até se poderia poupar a médio prazo, mas havia custos à cabeça envolvidos. Nomeadamente, a nível dos sistemas informáticos. Por isso, ainda agora não se sabe lá muito bem o que vai acontecer com o sistema informático do IPPAR, partilhado pelas regiões. Neste momento, o IGESPAR tem os dois sistemas (do IPPAR e do IPA) a funcionar em paralelo lá dentro, não havendo articulação entre eles.
Um exemplo de funcionamento exemplar: Numa Direcção Regional de Cultura é dado um parecer de licenciamento sobre uma obra e recomenda-se acompanhamento arqueológico. O parecer é metido no sistema. O processo vai para o IGESPAR – secção ex-IPPAR – depois do parecer do Director de Serviços e do despacho do Director Regional de Cultura (que também são inseridos no sistema). O processo segue para o IGESPAR. A Direcção do IGESPAR dá parecer, e mete-o no sistema (este sistema pode ser consultado on line pelos requerentes). O processo volta para a Direcção Regional. Aí uma funcionária envia por fax para o IGESPAR – secção ex-IPA – o parecer, para eles saberem que a obra terá que ter acompanhamento arqueológico, parte que é o IGESPAR (ex-IPA) que acompanha –, pois o IGESPAR/ex-IPA não tem acesso ao sistema do IGESPAR/ex-IPPAR – que tal como SIMPLEX???

Segunda questão: as Direcções Regionais de Cultura

Primeiro problema: os Directores Regionais não vêm da área do Património, logo não possuem o lastro de um percurso desta instituição, nem das suas preocupações. O risco disto é que o Património corre o risco de se tornar uma lateralidade. Agora aqui entra o SIADAP. Objectivos para o serviço, que sejam exequíveis e possam ser cumpridos, senão o ónus recairá em primeiro lugar em cima dos directores. Por isso vamos lá estabelecer objectivos que possamos cumprir, com todas as limitações orçamentais existentes. O tempo para pensar já lá vai!

Assim, com objectivos parcos e sem dinheiro, quem tem tempo para se preocupar com o Património? Há que descartar-se de coisas, para reduzir a despesa pública. E, se nos descartarmos de coisas em número suficiente, também vamos descartar pessoas, reduzindo ainda mais a despesa pública - estamos sempre a ganhar!!

Por isso, creio que, neste momento, já ninguém pensa no Património como um todo. Valha-nos Deus que com as manobras lobbísticas o Património Arqueológico ficou até agora nas mãos do IGESPAR, por isso, para já ainda é visto como um todo, independentemente de estar ou não classificado, de estar ou não afecto. Até quando? Sim, porque as extensões do IPA dependem do IGESPAR e não das regiões. Faz sentido? Nenhum. Mas, se a forma de o encarar não transita ao mesmo tempo que as competências, a situação pode vir a ser grave.
Para já localmente, fica-se com o Património Arquitectónico da região, mas não para pensar nele como um todo. E se, ainda no IPPAR, se pensava pouco no Património não classificado (o que já era gravíssimo), agora teme-se que em termos de intervenção só se vá pensar no que está afecto às DRCs. O resto negoceia-se com as autarquias, transferindo para elas o ónus da questão.
Depois, há a parte de DGEMN, que fazia obras nos imóveis classificados mas não afectos ao Ministério da Cultura. Essa competência passou para as Direcções Regionais de Cultura, que não têm dinheiro para as fazer. Quando as muralhas começarem a cair em cima das casas e das pessoas, não apenas umas pedrinhas, que já caem, mas assim uns bons pedaços, talvez se altere a situação. Entretanto, tenta-se passar essa responsabilidade, também, para as autarquias, esperando-se que, entretanto, não se percam vidas pelo meio!
Em suma, uma das missões prioritárias das DRCs vai ser complicar a vida das pessoas, dando pareceres limitativos às suas obras. Que se dá em troca? Pouco “quase nada”.

Já se falou, aliás, por várias vezes, em passar a cobrar pareceres, mas ainda não houve coragem para levar isso por diante. Embora neste campo já haja situações gritantes, de que ninguém fala, por exemplo a questão do Direito de Preferência, que não é de agora, já vem do tempo do IPPAR. Sabem que, em Zonas de Protecção de imóveis, sempre que há compras e vendas de casas, as DRCs têm que se pronunciar sobre se querem exercer o direito de preferência (claro que não querem, não há dinheiro para nada, mas isso não interessa!)? E isso é cobrado às pessoas. É tão bom estes mecanismos para incentivar as pessoas a comprar casas em Centros Históricos é só benefícios! O que leva a novas interrogações: quando se fazem classificações e se delimitam Zonas Especiais de Protecção, o que se está a fazer: a proteger o património ou a gerar fontes de receita para o Ministérios da Cultura?

Em suma, sem dinheiro para intervir, com muito pouco para funcionar, como podem estes serviços ser, por um lado, exemplares e, por outro, manter a sua independência? (ainda havemos de ver os seus técnicos a pedir boleias às autarquias, a empreiteiros e a donos de obras, para irem dar os seus pareceres, que serão sempre isentos e descomprometidos!).

Terceira questão: as preocupações do Ministérios da Cultura

São as 7 maravilhas de Portugal, a exposição do Hermitage e a próxima exposição das filigranas do Hermitage! Quem pensa na capelinha de S. Bartolomeu com pintura do século XV e sem telhado??? A quem pode isso interessar???? Pensar o Património na sua envolvente???? Cartas e convenções internacionais sobre Património? Quem perderá tempo a lê-las????

in maisevora.blogspot.com

2008-02-24

Porquê e para quê?

Estão lançados os dados do ciclo de apresentações da Al-Madan 15, que alinha algumas reflexões sobre o passado recente da Arqueologia portuguesa e está na génese da proposta de debate alargado que visa dar continuidade e generalizar essa análise, trazendo-a para a situação presente e as perspectivas de curto e médio prazo.

O resultado deste desafio colectivo só mais tarde se poderá avaliar, pois depende essencialmente da receptividade que encontrar junto dos seus principais destinatários.

Neste contexto, quando alguns ainda ponderarão a atitude pessoal a tomar, avaliando da disponibilidade e vontade de se deslocarem a algum dos pontos de debate (Lisboa, Porto, Faro, Beja e Conimbriga) ou usarem o ciberespaço de comentário, parece-me útil alinhar algumas das razões pelas quais me parece uma oportunidade imperdível e de difícil repetição.

Muito sinteticamente, está na hora de mostrar a nós próprios e aos outros que…

  • preservamos motivação e capacidade para ultrapassar uma certa “anomia” pessoal e colectiva, fomentada pelo crescimento profissional muito rápido e desregrado e agravada pela conduta errática dos poderes públicos;
  • somos capazes de ensaiar diagnósticos sustentados das situações que, hoje, provocam maior constrangimento à actividade arqueológica e à defesa e promoção do Património arqueológico;
  • constituímos uma massa crítica capaz de se assumir como interlocutor para a definição das políticas e estratégias para o sector;
  • temos ideias, ainda que plurais, sobre as condições de acesso e exercício da profissão, os imprescindíveis mecanismos de auto-regulação e as necessidades de formação;
  • conseguimos discuti-las e assumir as diferenças, abertamente, sem complexos e preconceitos, em clima de tolerância mútua, com sobreposição da riqueza dos argumentos e experiências às rivalidades e antagonismos pessoais e de grupo.

Se isto não for possível, agora ou num futuro próximo, só resta manter a velha lamúria de corredor, o discurso dos “coitadinhos” e o agravamento do clima de depressão colectiva. Mas a culpa não será só dos outros…

Para além disso, tratando-se de debates públicos e, principalmente, a divulgar pela Internet, há que ter consciência da imagem externa que projectamos, aproveitando para provar a nós próprios e aos outros que…

  • exercemos uma função socialmente útil, fundamental para o conhecimento do Passado, a melhoria das condições do Presente e do Futuro e a permanente reconstrução da memória social e das identidades individuais e colectivas;
  • merecemos, e estamos dispostos a fazer por conquistar, outra atenção do poder político e maior reconhecimento na sociedade portuguesa.

Sem a presunção de que esteja neste conjunto de eventos a solução para todos os problemas do nosso quotidiano, tenho a expectativa moderadamente optimista de que saberemos agarrar a oportunidade para, mais que não seja, abalar “águas turvas” e lançar pistas com futuro.

Se não… pelo menos dormirão de consciência mais tranquila os que tiverem tentado.

2008-02-22

A Arqueologia portuguesa no divã

Periodicamente, o meio arqueológico nacional agita-se, preocupa-se, fala de crise… Depois, esquece-se, acomoda-se e aquieta-se, até à próxima “crise”.
Lembram-se?
Foi assim no momento em que explodiu o tema da Arte do Côa, seguramente, o mais interessante e fascinante sobressalto cívico-arqueológico português – foi nos fins da 1994, já lá vão catorze anos, que a coisa saltou para os jornais.
Crise, crise, como é possível???... Como pôde tal coisa acontecer, estarmos em vias de ficar sem o gigantesco vale sagrado com as suas manifestações de arte parietal?
No (ainda) incipiente meio arqueológico nacional – não cabíamos todos num táxi, mas quase – tomava corpo uma nova geração de estudantes de Arqueologia, que teve um papel importantíssimo no processo do Côa. Um processo que foi, ele próprio, um caso de estudo de participação cívica em Portugal – a quem não conhecer, recomenda-se a leitura do livro coordenado por Maria Eduarda Gonçalves, O Caso de Foz Côa: Um Laboratório de Análise Sociopolítica. Lisboa: Edições 70, 2001. Um processo em que a acção persistente e continuada dos arqueólogos, gozando também, diga-se, de uma conjuntura política altamente favorável (o fim de ciclo do chamado cavaquismo, com tudo o que tal implicou), demonstrou a eficácia do protesto sólido, coerente, bem fundamentado e com objectivos claros e bem definidos.
Dois anos depois, em 1996, nascia o IPA, tal como o conhecemos – a este respeito é interessante reler a entrevista dada por João Zilhão, nas páginas do Al-madan, II série, 6, 1997, p. 78-98, acompanhada de comentários vários. E veio o Parque Arqueológico do Vale do Côa (primeiro e único no género, no nosso país), veio a ratificação pelo Parlamento Português da chamada “Convenção de Malta” (com o consequente aumento exponencial da actividade arqueológica de contrato), veio o Instituto Português de Arqueologia, veio a criação da Revista Portuguesa de Arqueologia e o crescimento da série monográfica Trabalhos de Arqueologia (ambas referências fundamentais da afirmação pública da actividade arqueológica), veio o grande programa de minimização de impactes do regolfo da barragem de Alqueva. Em suma, uma época de grande excitação e entusiasmo, actividade febril e grande optimismo, onde a geração dos estudantes que se manifestaram no Côa encontrou o espaço para crescer e se consolidar enquanto verdadeira comunidade profissional, tanto no sector público, como no privado.
Depois veio a crise, não a da Arqueologia, mas a do país. O engordar do défice e o emagrecer do PIB. A instabilidade política.
Depois, nova crise. Falou-se em fusão, em retrocesso ao velho modelo IPPAR – recorde-se, porque nunca será demais dizê-lo, o modelo que possibilitou a quase destruição do património do Côa. Nova agitação e pública indignação contra o Ministro da Cultura.
E a coisa ficou assim.
Depois, voltas e mais voltas, e voltou ao poder o partido que tinha salvo a Arte do Côa e que tinha apresentado o melhor Ministro da Cultura que até hoje existiu em Portugal, embora a má notícia (que sempre acompanha a boa) fosse que o dito ministro não voltaria à ribalta, pelo menos, à da Cultura, nem a sua linha doutrinária vingara no partido a que pertencia.
No domínio do Ensino, nasceu um novo modelo de formação, marcado por um paradigma diferente, o chamado de “Bolonha”. Implicou um redesenho geral dos três ciclos de Ensino Superior em Arqueologia - licenciatura / mestrado / doutoramento, de imensas potencialidades – e a consolidação da noção de que o processo formativo não se esgota neles, antes se afirmando como um processo contínuo, dito de formação ao longo da vida. Começa assim a desenhar-se a possibilidade de fazer crescer a “massa crítica” de arqueólogos com níveis avançados de formação, abrem-se mil possibilidades de concepção e desenho de acções, destinadas a profissionais já formados e em pleno exercício.
Ah!... É verdade. Afinal, o que fora ameaça em tempos passados, consumou-se no presente. Os organismos IPA / IPPAR fundiram-se e, agora já se sabe, afirmado e confirmado, a Biblioteca do IPA encerrará por tempo indeterminado, à espera de novo poiso. As consequências destes e de outros eventos não são necessariamente catastróficas, sequer dramáticas, mas são, seguramente, preocupantes. Não sabemos qual será a capacidade de afirmação e manobra dos responsáveis pela Arqueologia nacional, neste novo quadro institucional; não sabemos por quanto tempo permanecerá inacessível a melhor biblioteca especializada que temos.
Novo sobressalto. De novo a crise, a crise…
E a coisa ficou assim?
Com a devida vénia ao Zeca Afonso, diria que a indignação do arqueólogo é como o amor do estudante… Não dura mais que uma hora.
Por isso, saúda-se a iniciativa de Al-madan de criar esta Arqueologia em Revista – já agora, uma revista (Al-madan) que ao longo destes anos se tem afirmado como um espaço fundamental de notícia, balanço, encontro e debate, podendo rastrear-se nas suas páginas boa parte dos temas aqui aflorados. Pode ser (se assim o quisermos) um confortável fórum de reflexão e debate, com um fôlego e alcance que se não esgote na tradicional pirotecnia de arraial, que tem iluminado os céus em cada nova crise.
Pode ser também o lugar onde finalmente, deitados no divã, com luz velada e quase só entre nós (e o resto do mundo) nos perguntemos porque razão ainda não há um Museu em Foz Côa?... Porque razão ainda não viram a luz do dia as monografias das intervenções no regolfo da barragem de Alqueva?... Porque razão a “classe” dos arqueólogos não se consegue auto-regular, estabelecendo entre si padrões de qualidade mínimos para as intervenções de arqueologia de contrato?... Porque razão a “classe” dos arqueólogos não se consegue auto-regular, garantindo patamares dignos de remuneração aos seus técnicos?... Porque razão a “classe” dos arqueólogos não se consegue auto-regular, denunciando vigorosamente as intervenções desonestas e de inaceitável qualidade?... Porque razão não se consolida o princípio da publicação regular dos resultados das escavações (seja por que meio ou em que suporte)?
Enfim, que este espaço seja a tradicional praça do protesto indignado e de clamor contra a incúria dos outros, mas que seja também o nicho de introspecção dos arqueólogos.

Efeito de perspectiva

Assumo a plenitude das minhas responsabilidades de participação no debate interno da classe, seja de carácter técnico ou deontológico, pelo que não podia senão aceitar de imediato o convite da Al-Madan, que agradeço.
Sabem que retribuirei com uma perspectiva sempre crítica.

Importaria antes de mais deixar claro qual o meu ponto de vista, no sentido literal da expressão — de onde me posiciono no mundo da Arqueologia portuguesa —, para que cada um dos leitores possa perceber essa perspectiva e escolher como e em que sentido “filtrar” as minhas opiniões.

Arrisco: frustradas as ambições familiares para a criança, já mais adulto o meu percurso na Arqueologia fez-se de passagens mais ou menos efémeras — e com resultados muito díspares — por diversas Universidades de Coimbra, Bordéus, Porto, Lisboa e agora Paris.
Este caminho levou-me do Direito, à Arqueologia, à Pré-história.
Sinto que a minha formação estará sempre incompleta e, de facto, no momento em que me convidaram para este evento estava ausente, em formação.

Para explicar o dito “ponto de vista”, importará dizer também que divido a minha actividade profissional por dois campos fundamentais:
- na Arqueologia dita “de investigação”, quer em Portugal, quer mesmo ultimamente de forma muito mais efectiva em França, interesso-me pela Paletnologia, Tecnologia lítica e Geoarqueologia;
- na Arqueologia dita “preventiva / de emergência” sou co-fundador da Dryas Arqueologia que (se resolvermos muitas das nossas incompetências próprias e o ambiente exterior o permitir) talvez um dia chegue a ser muito mais do que uma empresa: um projecto de centro de investigação na área da Arqueologia, Bioantropologia e Património Histórico, cientificamente independente e financeiramente sustentado numa actividade de Arqueologia preventiva / de emergência — tal como foi pensado desde o início.

Publico regularmente, mais no estrangeiro do que em Portugal, e invisto tudo o possível na divulgação científica e sobretudo na participação / organização de actividades de formação para estudantes e jovens arqueólogos.

Pelo meio, passei pela direcção da APA.

Fugazmente: nem os organismos colegiais alguma vez foram ambientes amigáveis para “os da frente”, nem os meus dotes de composição e transigência merecem grande louva.

Resulta disto tudo um “ponto de vista” muito independente.
Não enfileiro em nenhuma das eventuais correntes actuais da Arqueologia portuguesa, não sou aluno de ninguém, nem a ninguém devo o meu emprego, assusta-me o mainstream.
As minhas relações profissionais fazem-se sempre da maior franqueza e espírito crítico.
Ambos me têm valido curtos dissabores e uma enorme paz de espírito.

Depois das derrotas, nunca relembro o pénaltis não assinalados, mas sim aqueles que atirámos para fora; não penso na “dualidade de critérios do árbitro”, mas sim nos quilómetros que não corremos.
Serve isto para dizer que da busca de ver tanto mundo também resulta um olhar muito auto-critico.
Antes de mais sobre mim, depois sobre os meus.
Ora os meus, neste caso, são os arqueólogos.
Por isso, não sou dos que pensam que os problemas da Arqueologia nacional estão… no árbitro, na relva, nas linhas, na iluminação ou na bola (nem, como há alguns anos pude dizer, que os problemas da Universidade estejam nas cantinas, nas salas, nas mesas, no giz ou nas designações das cadeiras…), mas sim nos próprios arqueólogos (ou, naquele exemplo de há alguns anos: nos professores e nos alunos! Mas é apenas um exemplo, aliás, na altura eu era aluno).

Sou português, filho de uma família de juristas, arqueólogo, aprendiz de feiticeiro e também me faltam dentes. Sou o Miguel Almeida, 37 anos, do Porto.
Muito mais vivo que morto.
Contai com isto de mim.

2008-02-21

Lançar pontes entre os Arqueólogos

Não é fácil congregar os arqueólogos, sobretudo quando está em causa a indispensável introspecção colectiva. Para lá de tudo o que quase sempre dividiu aqueles que se intitulavam ou reconheciam como tal, hoje é notória uma profunda clivagem geracional e o "Archport", enquanto tribuna aberta tem sido disso a principal testemunha. E não se trata apenas de uma clivagem de idades, mentalidades, experiências ou conhecimentos. Afinal, há de tudo em todos os estratos etários. A verdadeira e perigosa clivagem começa a revelar-se entre aqueles que ocuparam e se mantiveram nos postos de trabalho (na Administração, no Ensino ou nas autarquias, postos que é preciso lembrar, eram quase inexistentes há 20 anos) e os que, ano após ano de intenso e por vezes riquíssimo trabalho de campo, entremeado com mestrados e até doutoramentos, vêm como única perspectiva, ou mudarem rapidamente de profissão (e todos conhecemos casos...) ou continuarem a arriscar na insegurança e na precariedade, na esperança de que uma autarquia (no Estado ou numa Universidade, já nem pensar...) venha a abrir um qualquer concurso “limpo”. É verdade que o problema é hoje transversal a toda a sociedade e a quase todas as áreas profissionais, com raríssimas excepções. Mas se ficarmos à espera das mudanças de fundo na sociedade tal como hoje a conhecemos, bem podemos esperar sentados. Será que, apesar de tudo, ao nível da “classe” é possível forçar mudanças? As questões meramente profissionais estarão desligadas da atitude da Administração, relativamente à salvaguarda do património? Se é verdade que, aparentemente e durante algum tempo, no contexto das Humanidades, os arqueólogos pareciam ser os que melhores saídas encontravam (pelo menos havia “trabalho” pago...) todos temos consciência de que isso resultava das novas exigências e condicionantes impostas pela Administração no âmbito da Salvaguarda Preventiva e não de qualquer alteração cultural de fundo. Em contrapartida, a actual degradação profissional na Arqueologia não parece decorrer ainda do desmantelamento em curso da já de si reduzida capacidade fiscalizadora e reguladora do Estado, o que faz temer ainda mais pelo futuro próximo. Mas não haverá também culpa no cartório dos Arqueólogos? Não falo, apenas na concorrência desleal entre empresas ou na exploração selvagem do “arqueólogo pelo arqueólogo”. Que fizeram os arqueólogos, enquanto grupo, para de forma organizada e concertada, demonstrar à Comunidade, que o seu trabalho era social (e até economicamente) útil, e não apenas uma mera obrigação burocrática imposta aos particulares por um Estado que esquecia ou hipotecava o seu (nosso) próprio património? Não gritaram os arqueólogos, porventura, demasiadas vezes e em casos caricatos, que vinha lá o “lobo”, criando crescente insensibilidade às questões do Património, mesmo nos “media” mais ávidos de “sangue”? Há pois que aproveitar a oportunidade que a iniciativa proporcionada pelos sucessivos lançamentos da Almadan, ela própria um símbolo da capacidade de intervenção da sociedade civil em prol da cultura e do património, com a cumplicidade de uns tantos carolas e a colaboração de algumas instituições, para reflectir sobre a “crise” e, quem sabe, relançar pontes entre as diversas “arqueologias” que permitam construir uma unidade de acção, hoje mais do que nunca, indispensável para as lutas que se avizinham.

Muito barulho por nada?...

Os arqueólogos fazem muito barulho. Somos poucos, mas quando queremos somos capazes de armar um bom estardalhaço.


Foi com estardalhaço, recorde-se, que se conseguiu fazer recuar um brutal investimento público nacional para salvaguardar um brutal património cultural da Humanidade. De tanto barulho fazermos até já somos ouvidos no meio da construção e obras públicas, tradicionalmente hostil à arqueologia e aos arqueólogos. Num seminário sobre o Novo Código dos Contratos Públicos (CCP) ouvi repetidamente ser invocado como motivo de suspensão lícita de trabalhos a “ocorrência de achados arqueológicos”. E, se sublinho a expressão, é porque me parece significativo que, numa assembleia de engenheiros e juristas (a carta fora do baralho era eu e duvido que alguém suspeitasse a minha condição profissional), ninguém questionava a razoabilidade de suspender trabalhos por esse motivo, sendo até usado como exemplo óbvio para ilustrar o enquadramento desse procedimento no âmbito do CCP.

Também o barulho que fazemos motiva comentários como os que ouvi recentemente a propósito da chamada crise dos avençados do IGESPAR: “Ah, mas os arqueólogos são muito interventivos, muito unidos”. Somos muito interventivos e muito unidos fora das situações de crise? Sem ser quando toca a rebate para salvar o património do afogamento ou o que resta de uma experiência institucional muito positiva mas sucessivamente esfrangalhada por fusões e confusões? Quantos de nós, fora dos momentos de crise, participam activamente nas discussões públicas de documentos e instrumentos que podem interferir com o património arqueológico e com o exercício da profissão? Quantos de nós, fora dos momentos de crise, tem uma intervenção civicamente responsável na defesa dos direitos pelo exercício digno da profissão? Quanto de nós, quotidianamente, exercem a sua actividade com os mais elevados padrões de qualidade e no respeito dos princípios éticos e deontológicos da profissão?

Eu quero acreditar que somos muitos. E, como muitos que somos, temos é mais que ser interventivos e unidos para saber bem o que queremos fazer com o espaço que ganhámos, justamente e com estardalhaço, na sociedade portuguesa.

Este ciclo de debates, com o feliz título “Arqueologia em Revista”, pode efectivamente ser a oportunidade de mostrarmos, perante nós próprios para podermos ser coerentes perante os outros, que todo este barulho não tem sido... por (e para) nada.

2008-02-20

Bem-Vindos

Esta mensagem marca o arranque formal de mais um espaço de diálogo sobre a situação da Arqueologia portuguesa e áreas afins, que visa alargar o modelo editorial da revista Al-Madan a outras vias de intervenção, mais regulares, interactivas e inclusivas.
O seu aparecimento neste momento está directamente relacionado com o ciclo de debates “A Arqueologia em Revista”, com o qual o Centro de Arqueologia de Almada associa à apresentação do novo volume da Al-Madan (n.º 15) um grande debate nacional, descentralizado pelas cidades de Lisboa, Porto, Faro e Beja, de 1 a 29 de Março, para encerrar em Conimbriga, a 5 de Abril.
Garantido o envolvimento da Associação Profissional de Arqueólogos e da Associação dos Arqueólogos Portugueses, foram convidados 26 profissionais de reconhecido mérito para introduzir três dos temas mais prementes na actual conjuntura: “A Arqueologia e o Poder”, “A Arqueologia e os Arqueólogos” e “A Arqueologia e a Sociedade” (programa completo e desenvolvimento temático em http://www.almadan.publ.pt/).
Todos os eventos têm entrada livre e são assumidamente pensados para permitir a expressão das opiniões e preocupações colectivas, através do incentivo à participação generalizada dos presentes.
Para além disso, houve o cuidado de criar condições para a integração dos que não puderem estar presentes em nenhum dos locais propostos, bem como dos que queiram dar continuidade ao debate ou prefiram outras formas de comunicação.
É nesse contexto que surge este blogue, onde os momentos mais significativos das várias sessões serão divulgados em registo vídeo e abertos ao comentário público, e onde um painel de colaboradores convidados continuará a reflectir e a interagir sobre estas matérias.
Espera-se e deseja-se que seja bem aproveitado o intenso esforço organizativo do CAA, a boa vontade e empenhamento das associações parceiras, e a disponibilidade e experiência dos que aceitaram ajudar a sistematizar e tornar mais produtiva a discussão.
Para isso, é importante que cada um dos leitores destas linhas se sinta motivado a enriquecer com a sua presença algum dos cinco debates programados, e a participar no comentário das matérias aqui publicadas, com moderação e sem preconceitos ou processos de intenção, para que fique demonstrada a crescente maturidade pessoal e profissional dos que se movem no ainda frágil meio arqueológico português.