Que me desculpem os meus companheiros de blog por este longo desabafo, mas o comentário "impaciente" de PF ajudou a quebrar a minha tentativa de me manter contido. E o dique rompeu.
Há cerca de três anos, a propósito de uns episódios semelhantes aos que hoje vivemos na "ciberarqueologia", escrevi (para os meus botões) o seguinte:
"Perguntaram-me se não me achava arrogante.
Sim, creio que sou, por vezes, arrogante. Mas não da arrogância oriunda da soberba e da altivez. De um narcísico deslumbramento ou de cegueira selectiva. De uma auto avaliação inflacionada. Antes, sou atacado da arrogância nascida do cansaço, da impaciência para com a mediocridade; para com os que dela sofrem, mas teimosamente se mantêm ao seu serviço, quais coelhas descontroladas, gerando e gerando mais medíocres, transformando o país num extensa monocultura de eucaliptos. E, por momentos, o pirómano dentro de mim agita-se.
Não sofro da arrogância da soberba, repito. Como diria Pessoa, não me conseguiria enganar nem à consciência do meu enganar.
Que fazer com estas florestas de medíocres?
Dir-lhes-ia para emigrar, não fora o caso de já me ter pronunciado contra a importação de resíduos tóxicos produzidos por outros países.
A solução incendiária seria pouco democrática; demasiado revolucionária e sangrenta para consciências que se querem moderadas. E os danos colaterais poderiam ser graves e irreparáveis num país e numa área em acelerado desequilíbrio ecológico.
Que fazer com estas florestas de medíocres?
A impaciência que se arroga corre o risco de se transformar em desistência, numa conformação paralizante. De nos fazer virar de vez para o oásis, para os nichos de diversidade ecológica, mais tarde provavelmente circunscritos a reservas pelo poder da praga triunfante. Sim. Atenção! O medíocre tem um fortíssimo instinto de sobrevivência. A sua multiplicação em massa é a sua força e a sua capacidade de resistência. Sozinho é pateticamente vulnerável. Pelo que não descansará perante uma ameaça. A extreminação está inscrita no seu código genético. Resolveria o problema da sua sobrevivência e, simultaneamente, acabaria com aquela arreliante e incómoda pedrinha no sapato, aquela invejazinha pequenina, aquele odiozinho incontrolável, que, nos poucos e breves momentos de consciência que o medíocre tem, o consomem até ao tutano.
A minha arrogância é, pois, ainda um acto de resistência. A minha conformação, essa sim, poderá ser um acto de egoísmo e, simultaneamente, de assistência ao homicídio."
(11-08-2005)
De facto, os últimos dias têm demonstrado, na área da Arqueologia, o total falhanço das políticas de educação, revelando uma crescente mediocridade (atenção, sempre houve), a qual se vem progressivamente apresentando licenciada e, graças às novas tecnologias, com acesso a palcos mediáticos (felizmente ainda não demasiado mediáticos). Mas mais do que nos lamentarmos, há que pedir responsabilidades. Responsabilidades políticas. Mas essas leva-as o vento. Mais próximas de nós, estão as responsabilidades dos nossos colegas que estão no ensino. Como é possível que pessoas com este nível de ignorância e insuficiência ética e intelectual (a imaturidade não explica tudo) possam estar nas universidades e possam delas sair licenciadas? Que certifica hoje um certificado de habilitações? Já sei. As Universidades têm constrangimentos. Mas não podemos aceitar que esses constrangimentos justifiquem tudo. Que, pelos problemas internos que têm, que pelas dificuldades financeiras, a Universidade aceite toda a gente sem ter em conta requisitos básicos e licencie toda a gente, sem ter em conta competências mínimas. E se são obrigados a isso, que o denunciem publicamente e não sejam tão colaboracionistas. Aceitar compreensiva e passivamente essa situação era o mesmo que aceitar que, por dificuldades financeiras uma empresa ou um arqueólogo realize um mau trabalho, não cuide da qualidade científica e técnica do seu trabalho, se desresponsabilize das suas obrigações. Sei que muitos docentes que se recusam a transitar (não sei se aprovar e reprovar ainda se usa nas Universidades, por causa dos traumatismos) alunos por várias vezes, dadas as insuficiências destes, são acusados das maiores barbaridades por isso. Tal como no básico e no secundário, a Universidade está a ser empurrada para o seu próprio abismo.
Mas se a fonte académica não começar a tratar as suas águas, temo bem que sejamos inundados por este tipo de resíduos, progressivamente maioritários, que acabarão por destruir o que, apesar de tudo, se construiu de positivo nas últimas décadas da Arqueologia portuguesa. Claro que não é apenas um problema da Arqueologia, mas geral. Qualquer dia temos um aluno de filosofia a perguntar se alguém por aí já ouviu falar de um tal Platão ou de um qualquer Descartes. O problema transcende a disciplina e obriga a plataformas de entendimento mais vastas para poder ser atacado.
Na Arqueologia, contudo, não penso que o possamos fazer com base numa utópica unidade, pois esta é manifestamente impossível, porque muita desta gente que por aí se intitula de arqueólogo pura e simplesmente não o é (nem tem uma ideia aproximada do que é Arqueologia enquanto ciência social e enquanto profissão, do que é Ciência, do que é Património). Não falamos a mesma linguagem, não temos o mesmo posicionamento sobre a responsabilidade social da disciplina e dos seus profissionais, etc. etc. etc. Gente que não lê (manifestamente não lê), não pára para pensar, não pára para ouvir. Mas acha-se habilitada a falar e a fazer charivaris a torto e a direito. A ignorância é atrevida, de um atrevimento inconsciente, que nem a máxima socrática (provavelmente por desconhecimento) minimiza. É, como afirmava Ortega y Gasset há mais de 60 anos, o lado mais funesto do triunfo das massas (recomendo vivamente a leitura da "Rebelião das Massas" deste filósofo espanhol). A solução passará pela não desistência dos que têm inequívoca capacidade intelectual e ética democrática, mas sem terem ilusões quanto a uma eventual união racional dos espíritos. Sim, não é contradição falar, a propósito deste posicionamento, de democracia. Uma postura democrática exige consciência e conhecimento, para livremente podermos ajuizar, formar opinião e expressá-la em respeito. A ignorância não é livre e não consegue exercer livremente a vivência democrática. Esse era, aliás, um dos argumentos basilares das políticas de generalização da alfabetização, sustentadas no pensamento setecentista de que a liberdade se baseia no uso da razão e que esta necessita de educação e conhecimento. O falhanço do sistema de ensino é o falhanço da democracia e da cidadania portuguesas e não simplesmente da sua economia. É insuportável ouvir políticos a defender a qualificação apenas com o argumento económico e competitivo, esquecendo justificaçoes talvez mais fundamentais. Por mim, estou como PF. Já não há pachorra (um sentimento perigoso, porque desmobilizador, e que nos pode levar à centração no umbigo, como já se nota em algumas cabeças inteligentes da nossa praça arqueológica). Não devemos ser exclusivos, mas não podemos apostar na inclusividade sem critério e sem exigência. Porque será que tanta gente fala da necessidade de se criarem em Portugal Universidades de elite.
António Carlos Valera
2008-05-27
Mediocridade e irresponsabilidade
Temas:
Arqueologia,
Ensino
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7 comentários:
A mensagem do António Valera traduz um compreensível “estado de alma” (cada vez há menos “pachorra”), mas dá-nos também a chave para ultrapassar os perigos que este encerra (desmobilização, individualismo, intolerância…), evitando agravar ainda mais a situação que hoje vivemos nas áreas da Arqueologia e do Património.
NÃO DESISTIR, mesmo sem ilusões unanimistas, reunindo com critério e exigência os que estiverem dispostos a construir as plataformas de entendimento indispensáveis à transformação positiva de um presente que a ninguém satisfaz.
Esta é uma responsabilidade clara de quem não abdica de pensar e expressar as suas ideias, e de quem se preocupa em manter uma acção consequente com as suas responsabilidades sociais e profissionais e com o que pensa, diz e escreve.
O meu desabafo estava muito longe de querer significar um sentimento de desistência. Reflectia apenas um momentâneo estado de irritação face à mediocridade e à irresponsabilidade (citando o António) que encerram determinados comentários neste e noutros espaços de discussão. Mas desistir, nunca, muito menos depois de todo o trabalho que temos tido desde há alguns meses a esta parte.
Em vez de andarem por aqui a fazer filosofia de 3ª categoria recomendava os exmos. eruditos a usarem a sua "enorme" influência e conhecimento no meio. As pessoas dificilmente se conseguem alterar, algumas serão sempre burras e mal-educadas, as políticas essas são mutáveis, a verdade é que os centros de decisão política se estão marimbando para os problemas da arqueologia. As falinhas mansas são águas passadas, os senhores pensam que vivem numa democracia mas estão enganados. A engrenagem funciona à base do tacho, da cunha, do esquema, não serão as filosofias aqui expressas que o vão mudar. Ou se faz uma revolução ou se entra no esquema. Como a revolução não é bem vinda em certas mentes altamente desenvolvidas e acomodadas resta a segunda via.
Comecem os centros de decisão arqueológicos a entrar com acções no tribunal europeu contra a destruição de património por parte dos grandes patos bravos e vão ver o milagre realizar-se (vide Quercus study case). Vai dar para todos e ainda vai sobrar para a caridade. O que se passa são meras lutas de poder ao estilo roma antiga. Ganha quem tiver mais descaramento, mais tropas ou quem der a maior facada pelas costas, as tropas da arqueologia são fracas, resta apertar os calos e ser descarado e de vez em quando dar uma facadinha.
Esta classe é alvo de chacota social e está nas dificuldades em que se encontra precisamente porque as pessoas nos últimos anos que tomaram as rédeas pensaram demais. Falta o sentido prático para se envolverem no meio que os rodeia.
P.S. Apoio a revolução. Mas como não é esse o entendimento comum, a única alternativa que resta para não ser demagógico é entrar ainda mais na engrenagem pouco ética e corrupta desta "democracia". É remendar, ir remendando até à implosão do país. Enfim é este o pensamento cíclico daqueles que estiveram nas boas Universidades e tiveram boa educação. Uma coisa lhes gabo, a esperança e a ceguez auto-induzida!
Esta classe é alvo de chacota social e está nas dificuldades em que se encontra precisamente porque as pessoas nos últimos anos que tomaram as rédeas pensaram demais. Falta o sentido prático para se envolverem no meio que os rodeia.
Se a classe é alvo de chacota social não será por se ter pensado muito nos últimos tempos, mas precisamente pela razão contrária, por uma manifesta falta de inteligência de grande parte dos agentes que actuam junto da sociedade no dia-a-dia. A falta de "sentido prático" de que fala é a da incapacidade que a grande maioria dos nossos profissionais demonstra em saber transmitir à sociedade a razão de ser da necessidade da sua existência, antes escudando-se detrás de comportamentos arrogantes e autistas próprios de gente com pouco sentido da responsabilidade social que acarreta ser arqueólogo e defensor do património arqueológico. Se se responde aos cidadãos com respostas do tipo "isto é assim porque sim e eu é que sei" não nos podemos espantar quando esses mesmos cidadãos nos deixam de respeitar e nos vêm como empecilhos e meninos malcriados. As imposições, mesmo as "revolucionárias", não são normalmente muito bem vindas!
A democracia pode não estar nos seus melhores momentos e poderá não ser um sistema político perfeito, mas é o que mais se aproxima do ideal de participação cívica com iguais oportunidades por parte de todos os cidadãos. Se estes cidadãos decidem (como parece ser cada vez mais o caso português) demitir-se das suas responsabilidades como membros de uma sociedade, esse é um problema de toda a cidadania e não apenas do sistema político. Então não nos poderemos admirar quando outros tomam as rédeas...
Meu caro anónimo, se calhar é mesmo preciso uma revolução: mas uma revolução que saneie toda uma sociedade. Não através de afastamentos mais ou menos compulsivos, mas da recriação de um sistema educativo-formativo que ensine as pessoas a serem cidadãos e não meros indivíduos treinados para competir de modo selvagem. É utopia, claro! Mas ainda prefiro acreditar que é possível mudar utilizando-se os instrumentos que esta democracia "pouco ética e corrupta" põe ao dispor dos cidadãos e não enveredar por demagógicas diatribes pseudo-revolucionárias que, feitas todas as contas, acabarão por contribuir com nada para a transformação da sociedade.
É interessante(!) a lógica de argumentação do anónimo das 23:04 de ontem: “os centros de decisão política” estão-se “marimbando para os problemas da arqueologia” e preenchidos por quem beneficiou de uma “engrenagem” que funciona “à base do tacho, da cunha, do esquema”; no entanto, a grande esperança reside em esperar que essas mesmas pessoas resolvam (por inspiração divina?) alterar as políticas e começar a “entrar com acções no tribunal europeu contra a destruição do património”, o “milagre” que a todos nos redimirá!
De facto, isto é que é pensar apenas o suficiente e ter sentido prático! Assim sim, deixaremos de ser “alvo de chacota social”!
As coelhas que produziram os mediocres são hoje as coelhas que se queixam, vocês tiveram anos para fazer alguma coisa pela arqueologia, agora que o vesuvio explodiu reunem-se no senado para discutir a situação, que falta de coragem.......
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