Em comentário a um comentário meu mais abaixo, em relação à minha pergunta sobre se não andaria a arqueologia portuguesa a reboque das escavações de emergência, o Miguel referiu-se, de forma mais alargada, à arqueologia de salvamento. Em primeiro lugar, tem toda a razão o Miguel quando opta por usar a terminologia “arqueologia de salvamento”: respondi arqueologia de emergência porque era essa a referência a que se aludia no comentário anterior, não tendo sido, por minha culpa, explicito o suficiente. O que não é desculpa alguma – como bem disse o Mário Cláudio numa entrevista recente, quem escreve mal pensa mal.
Em todo o caso, eu nunca pretendi dizer que as intervenções de salvamento deveriam ser justificadas por problemáticas científicas. O que eu pretendia dizer era que não há uma qualquer problemática científica prévia a esse tipo de acções – nem nas de emergência nem nas preventivas já que ambas, por natureza e por definição, acontecem por reacção a uma ameaça que acontecerá num futuro mais ou menos iminente. Mas concordo contigo, Miguel – se houvesse investigação, em quantidade e qualidade, porventura as acções preventivas e de emergência seriam bem menos. Por exemplo, causa-me certa confusão haver quem especule sobre a putativa existência de caravelas quatrocentistas portuguesas afundadas em território nacional (apesar de se andar com a frase “os novos mundos que Portugal deu ao mundo” na boca desde os tempos em que a pérfida Albion proclamou o seu Ultimato sobre o mapa cor de rosa, ninguém sabe como é que eram os navios que levaram a proverbial Ínclita Geração até lá, já que não há deles um único exemplar estudado, documental ou arqueologicamente falando) mas não haver quem faça campanhas sistemáticas para prospecção e achamento dessas mesmas caravelas.
Pergunto-me: porque é que não existem? Não terão as Universidades interesse em enviar dois ou três especialistas a percorrer esses rios e rias de jusante a montante e essa costa de cabo a cabo? Que se faz da Estratégia Nacional para o Mar e do Livro Verde para a Política Marítima da Comunidade Europeia, em que a componente arqueológica náutica é valorizada e destacada? É letra morta? Não interessará ao Estado continuar a elaborar as cartas arqueológicas do nosso território (como a tal está obrigado por força das Convenções internacionais que assinou e ratificou, como a de Malta, artigo 7, ponto 1)?
Ou haverá interesse e não há dinheiro para pagar ordenados, navios e equipamentos? E estará toda a gente à espera que se promovam os estudos de avaliação de impacto ambiental, pagos por promotores de obra, e aí o tempo será forçosamente mais escasso, com prejuízo iniludível para a qualidade do trabalho científico, os restos das caravelas registadas em 5 cinco dias, porque é preciso que a obra avance e não há quem defenda a sua paragem ou, pelo menos, a sua reformulação?
Será que depois do caso do Coa, ainda há quem tenha a coragem de defender uma opção zero? Será que é ainda possível contrapor o valor patrimonial de um sítio versus o valor venal da obra em causa?
Estas são perguntas que faço a mim mesmo, embora não seja, definitivamente, a pessoa mais indicada para discursar sobre este tema. Primeiro porque, ao contrário do Miguel, a minha experiência em arqueologia preventiva se resume a três intervenções, todas em frente aquática, uma das quais culminou, por uma série de trapalhadas políticas, em embargo de obra e consequente arqueologia de emergência (embora se soubesse há mais de um ano aquilo que lá estava e até se tivesse decidido o destino a dar-lhe), sempre no seio do ex-CNANS e não dentro da lógica empresarial.
Depois porque, feliz ou infelizmente, aquilo que sei sobre o panorama actual da arqueologia portuguesa (tirando o caso específico da que se desenvolve em meio aquático) tem origem naquilo que leio aqui e acolá, ou seja, conheço os projectos e as acções publicadas bem como as pessoas responsáveis pelas mesmas apenas pela sua produção científica ou opinativa – o que, se felizmente me poupa quase que integralmente ao diz-que-disse-que-disse que afecta tão profundamente a classe, acaba por me sonegar alguma dessa informação crucial que aparentemente só se adquire, ou em contactos pessoais, ou nos intervalos dos colóquios e congressos, por entre um café e um bolinho.
Portanto, a minha avaliação sobre a arqueologia de salvamento é mais impressionista que realista – agradeço assim que me corrijam onde estiver errado já que isto é tudo tão complexo que fácil é perdermos o fio à meada.
E isto – e, quando digo isto, refiro-me ao País, a este povo que nele habita, à arqueologia que por cá se pratica, ao Património, à academia, ao tecido social, à cidadania e por aí fora – isto, dizia eu, anda tudo ligado, isto é um novelo cheio de pontas e nós, uns cegos, outros tortos, outros direitos, em que falar de uma coisa é acabar a falar de outra, sendo cada coisa consequente da outra e vice-versa.
Assim, dado o acima exposto, hesito por onde começar. Talvez pelo equívoco gerado. É claro que sou totalmente a favor da arqueologia de salvamento – é infinitamente melhor obter apenas 10% dos dados passíveis de se obter de um sítio do que deixar que 100% desses mesmos dados sejam destruídos. Este tipo de prática arqueológica constitui, sem dúvida alguma, em relação ao panorama que se vivia no ordenamento do território prévio à década de 90 do século passado, um salto civilizacional para a frente medido, não em centímetros, mas em anos-luz.
Contudo, relembro que, ao contrário do que a Jacinta Bugalhão dava a entender na sua apresentação para a “Arqueologia em Revista” de Belém, esse salto ocorreu sem que houvesse qualquer súbito rebate de consciência a assaltar os que intervêm no solo, subsolo e leito marinho do País, construindo, dragando, aterrando ou demolindo nas mais diversas frentes de obra, instantaneamente tornando-os conscientes da importância do património cultural e da sua defesa, preservação e estudo. Nem houve sequer um qualquer súbito ganho de respeito pelos arqueólogos e pelo trabalho que eles executam.
O que houve, isso sim, foi a transposição para direito interno português da Directiva 85/337/CEE relativa à avaliação dos efeitos de determinados projectos públicos e privados no ambiente (Decreto-Lei nº 186/90, de 6 de Junho, e do Decreto Regulamentar nº 38/90, de 27 de Novembro) e que resolveu o problema que o Estado tinha em fazer conciliar uma obrigação sua – proteger, estudar e prevenir a destruição do património cultural – com uma sua deficiência estrutural – a falta de recursos logístico-financeiros e humanos - na prática transferindo para o sector privado, agora financiado pelo princípio do poluidor-pagador, essa sua obrigação.
Assim, a existência hoje em dia da arqueologia contratual é uma obrigatoriedade que nos foi imposta como uma das muitas consequências da adesão de Portugal à Comunidade Europeia (obrigatoriedade essa que, mesmo assim, teve que ser clarificada e reforçada desde essa data pela direcção do IPA, honra lhe seja feita, e que viria a culminar na célebre Circular de 10 de Setembro de 2004, em que se definiram os termos de referência para o descritor património arqueológico em Estudos de Impacte Ambiental, de modo a que imperasse, em letra de lei e na prática, uma concepção mais abrangente de ambiente, onde a vertente do património arqueológico passasse a estar obrigatoriamente incluída no conteúdo dos EIA – algo se que terá tentado, mais ou menos atabalhoadamente, colmatar com o Decreto-Lei 48/98, de 11 de Agosto e 69/2000, de 3 de Maio, este actualizado pelo 197/2005, de 8 de Novembro).
Ora, esta obrigatoriedade - que acarretou mais custos e perdas para os promotores de obra, logo menos valias a serem realizadas pelos mesmos e, regra geral (admito que hajam excepções) mais antipatia dos mesmos em relação aos arqueólogos e ao próprio património - colidiu não só com os seus interesses materiais como com a nossa proverbial falta de cultura de apreciação, defesa e protecção do património cultural. Não obstante a Constituição da República Portuguesa acolher a defesa dos direitos culturais e do património cultural do povo português – nos artigos 9º, alíneas d), e) e f), 74º, nº2 e 78º, nº2, alínea c), consagrando-as como tarefa fundamental do Estado e de fazer incumbir ao Estado a criação de reservas e Parques Naturais e de recreio, bem como classificar e proteger paisagens e sítios de modo a garantir a conservação da natureza e a preservação de valores culturais e de interesse histórico ou artístico como direito fundamental dos cidadãos, no artigo 66º, nº2, alínea c), reforçando ainda ser direito e dever de todos, Estado e cidadãos, não só não atentar contra o património cultural como também o defender, impedindo a sua destruição (artigo 78º) – não obstante tudo isto, estamos ainda bem longe de a fruição, o estudo e a preservação do património cultural constituírem verdadeiramente um bem jurídico e um direito fundamental de todos os cidadãos à luz da nossa Lei Fundamental.
Sendo assim tão recente esta nossa nova realidade – que, reitero, nos foi imposta e ainda se encontra tão pouco assimilada e interiorizada – parece-me ser bem diminuta a quantidade de projectos científicos plurianuais a decorrer relativamente ao número das acções de arqueologia preventiva e de emergência que se fazem um pouco por todo o território nacional (mais uma vez, falo de modo impressionista, não sei se haverão números concretos – tê-lo-á a tutela, certamente. Seria interessante saber que percentagem da nossa arqueologia nos últimos anos tem sido dedicada a projectos de investigação, a projectos de valorização, a acções preventivas e a acções de emergência). Para esta relação perigosamente desequilibrada, que corre ao arrepio do que deveria ser a política patrimonial cultural portuguesa, concorre quase que exclusivamente um único factor: o financiamento. Follow the money, dizem os anglo-saxónicos e se há dinheiro (por enquanto...) é no imobiliário e na construção civil pública. Onde não há, é certamente na academia e na tutela.
Se vivêssemos num mundo ideal, estariam já identificados os potenciais arqueológicos de cada parcela do território nacional, emerso ou submerso. Ainda num mundo ideal, o Estado seguiria o que ratificou na Convenção de Malta e adquiriria para si (ou seja, para nós todos, cidadãos) os territórios mais relevantes em termos desse mesmo potencial, ainda na posse dos privados, de modo a constitui-los em reserva arqueológica.
Infelizmente, não vivemos num mundo ideal, vivemos em Portugal, país em que o até o próprio Estado por vezes destrói, ou deixa destruir, com obras suas ou de outrem, o seu património ambiental e/ou cultural.
Vivemos num país em que o dinheiro não abunda, escasseia até, em que a consciência ambiental e cultural de cada um não melhora por decreto, num país em que o pato-bravismo e o arrivismo ainda campeiam por essas terras fora. Ora, neste país real em que vivemos, em que as cartas arqueológicas ainda se encontram muito incompletas ou apresentam grandes zonas em branco (como exemplo, basta ver aquilo que se sabia existir na zona do Alqueva antes do estudo de AIA que se fez aquando da construção da barragem e aquilo que se ficou a saber após a sua execução) é o dinheiro aquilo que faz, por agora, mover a actividade arqueológica. Actividade essa que, como disse mais acima, não corresponde necessariamente à produção de novo conhecimento ou até à protecção e defesa desse património, tanto mais que vivemos uma época conturbada em termos de tutela, tutela essa que foi não só sangrada, tanto em termos financeiros como em recursos humanos, como ficou diminuída em termos hierárquicos, subalternizando-se mais uma vez ao património arquitectónico.
Escrevia o Vítor Oliveira Jorge, em 2000 (na revista da ERA), que as empresas de arqueologia representavam a vontade livre de grupos de cidadãos que se juntavam para, muito legitimamente, quererem ganhar a sua vida fazendo arqueologia, devendo ser profissionais competentes sob pena do o mercado se encarregar de os eliminar. Acautelava, no entanto, que não se poderia colocar a arqueologia a reboque dos poderes económicos, como um mero elemento decorativo, ou como uma desculpa para proceder a uma destruição sem precedentes do património, legitimada agora pela ‘intervenção arqueológica prévia’ que é muitas vezes uma farsa. O mercado não pode ser deixado a si próprio, tem de ser regulado por desígnios nacionais (ou colectivos, a diversas escalas) que compete aos responsáveis político-administrativos executar, ouvidos os técnicos e os cidadãos.
Tu, Miguel, também escreveste sobre a arqueologia que apelidaste de low cost (Al madan nº 14). Disseste que no universo das empresas portuguesas de Arqueologia a procura do lucro sobrepõe-se à observação do interesse nacional da preservação do património, uma sobreposição facilitada pela demissão da tutela em fiscalizar a excelência dos seus resultados e dos seus técnicos.
Pergunto-te, então: será que o mercado está regulado, eliminando os profissionais incompetentes, como preconizava o Vítor Oliveira Jorge há oito anos atrás? Ou será que ainda continuam actuais as perguntas que ele lançava: quem nos paga, porque é que nos paga, quem é que nos está a utilizar e com que fim? Quem somos nós, para que é que servimos?
Será que a arqueologia de salvamento é aquilo que mais nos interessa, enquanto na qualidade de cidadãos interessados e preocupados com o património e não tanto como arqueólogos que se movimentam na arqueologia contratual? Afinal, quem somos nós e para que é que servimos?
Em todo o caso, eu nunca pretendi dizer que as intervenções de salvamento deveriam ser justificadas por problemáticas científicas. O que eu pretendia dizer era que não há uma qualquer problemática científica prévia a esse tipo de acções – nem nas de emergência nem nas preventivas já que ambas, por natureza e por definição, acontecem por reacção a uma ameaça que acontecerá num futuro mais ou menos iminente. Mas concordo contigo, Miguel – se houvesse investigação, em quantidade e qualidade, porventura as acções preventivas e de emergência seriam bem menos. Por exemplo, causa-me certa confusão haver quem especule sobre a putativa existência de caravelas quatrocentistas portuguesas afundadas em território nacional (apesar de se andar com a frase “os novos mundos que Portugal deu ao mundo” na boca desde os tempos em que a pérfida Albion proclamou o seu Ultimato sobre o mapa cor de rosa, ninguém sabe como é que eram os navios que levaram a proverbial Ínclita Geração até lá, já que não há deles um único exemplar estudado, documental ou arqueologicamente falando) mas não haver quem faça campanhas sistemáticas para prospecção e achamento dessas mesmas caravelas.
Pergunto-me: porque é que não existem? Não terão as Universidades interesse em enviar dois ou três especialistas a percorrer esses rios e rias de jusante a montante e essa costa de cabo a cabo? Que se faz da Estratégia Nacional para o Mar e do Livro Verde para a Política Marítima da Comunidade Europeia, em que a componente arqueológica náutica é valorizada e destacada? É letra morta? Não interessará ao Estado continuar a elaborar as cartas arqueológicas do nosso território (como a tal está obrigado por força das Convenções internacionais que assinou e ratificou, como a de Malta, artigo 7, ponto 1)?
Ou haverá interesse e não há dinheiro para pagar ordenados, navios e equipamentos? E estará toda a gente à espera que se promovam os estudos de avaliação de impacto ambiental, pagos por promotores de obra, e aí o tempo será forçosamente mais escasso, com prejuízo iniludível para a qualidade do trabalho científico, os restos das caravelas registadas em 5 cinco dias, porque é preciso que a obra avance e não há quem defenda a sua paragem ou, pelo menos, a sua reformulação?
Será que depois do caso do Coa, ainda há quem tenha a coragem de defender uma opção zero? Será que é ainda possível contrapor o valor patrimonial de um sítio versus o valor venal da obra em causa?
Estas são perguntas que faço a mim mesmo, embora não seja, definitivamente, a pessoa mais indicada para discursar sobre este tema. Primeiro porque, ao contrário do Miguel, a minha experiência em arqueologia preventiva se resume a três intervenções, todas em frente aquática, uma das quais culminou, por uma série de trapalhadas políticas, em embargo de obra e consequente arqueologia de emergência (embora se soubesse há mais de um ano aquilo que lá estava e até se tivesse decidido o destino a dar-lhe), sempre no seio do ex-CNANS e não dentro da lógica empresarial.
Depois porque, feliz ou infelizmente, aquilo que sei sobre o panorama actual da arqueologia portuguesa (tirando o caso específico da que se desenvolve em meio aquático) tem origem naquilo que leio aqui e acolá, ou seja, conheço os projectos e as acções publicadas bem como as pessoas responsáveis pelas mesmas apenas pela sua produção científica ou opinativa – o que, se felizmente me poupa quase que integralmente ao diz-que-disse-que-disse que afecta tão profundamente a classe, acaba por me sonegar alguma dessa informação crucial que aparentemente só se adquire, ou em contactos pessoais, ou nos intervalos dos colóquios e congressos, por entre um café e um bolinho.
Portanto, a minha avaliação sobre a arqueologia de salvamento é mais impressionista que realista – agradeço assim que me corrijam onde estiver errado já que isto é tudo tão complexo que fácil é perdermos o fio à meada.
E isto – e, quando digo isto, refiro-me ao País, a este povo que nele habita, à arqueologia que por cá se pratica, ao Património, à academia, ao tecido social, à cidadania e por aí fora – isto, dizia eu, anda tudo ligado, isto é um novelo cheio de pontas e nós, uns cegos, outros tortos, outros direitos, em que falar de uma coisa é acabar a falar de outra, sendo cada coisa consequente da outra e vice-versa.
Assim, dado o acima exposto, hesito por onde começar. Talvez pelo equívoco gerado. É claro que sou totalmente a favor da arqueologia de salvamento – é infinitamente melhor obter apenas 10% dos dados passíveis de se obter de um sítio do que deixar que 100% desses mesmos dados sejam destruídos. Este tipo de prática arqueológica constitui, sem dúvida alguma, em relação ao panorama que se vivia no ordenamento do território prévio à década de 90 do século passado, um salto civilizacional para a frente medido, não em centímetros, mas em anos-luz.
Contudo, relembro que, ao contrário do que a Jacinta Bugalhão dava a entender na sua apresentação para a “Arqueologia em Revista” de Belém, esse salto ocorreu sem que houvesse qualquer súbito rebate de consciência a assaltar os que intervêm no solo, subsolo e leito marinho do País, construindo, dragando, aterrando ou demolindo nas mais diversas frentes de obra, instantaneamente tornando-os conscientes da importância do património cultural e da sua defesa, preservação e estudo. Nem houve sequer um qualquer súbito ganho de respeito pelos arqueólogos e pelo trabalho que eles executam.
O que houve, isso sim, foi a transposição para direito interno português da Directiva 85/337/CEE relativa à avaliação dos efeitos de determinados projectos públicos e privados no ambiente (Decreto-Lei nº 186/90, de 6 de Junho, e do Decreto Regulamentar nº 38/90, de 27 de Novembro) e que resolveu o problema que o Estado tinha em fazer conciliar uma obrigação sua – proteger, estudar e prevenir a destruição do património cultural – com uma sua deficiência estrutural – a falta de recursos logístico-financeiros e humanos - na prática transferindo para o sector privado, agora financiado pelo princípio do poluidor-pagador, essa sua obrigação.
Assim, a existência hoje em dia da arqueologia contratual é uma obrigatoriedade que nos foi imposta como uma das muitas consequências da adesão de Portugal à Comunidade Europeia (obrigatoriedade essa que, mesmo assim, teve que ser clarificada e reforçada desde essa data pela direcção do IPA, honra lhe seja feita, e que viria a culminar na célebre Circular de 10 de Setembro de 2004, em que se definiram os termos de referência para o descritor património arqueológico em Estudos de Impacte Ambiental, de modo a que imperasse, em letra de lei e na prática, uma concepção mais abrangente de ambiente, onde a vertente do património arqueológico passasse a estar obrigatoriamente incluída no conteúdo dos EIA – algo se que terá tentado, mais ou menos atabalhoadamente, colmatar com o Decreto-Lei 48/98, de 11 de Agosto e 69/2000, de 3 de Maio, este actualizado pelo 197/2005, de 8 de Novembro).
Ora, esta obrigatoriedade - que acarretou mais custos e perdas para os promotores de obra, logo menos valias a serem realizadas pelos mesmos e, regra geral (admito que hajam excepções) mais antipatia dos mesmos em relação aos arqueólogos e ao próprio património - colidiu não só com os seus interesses materiais como com a nossa proverbial falta de cultura de apreciação, defesa e protecção do património cultural. Não obstante a Constituição da República Portuguesa acolher a defesa dos direitos culturais e do património cultural do povo português – nos artigos 9º, alíneas d), e) e f), 74º, nº2 e 78º, nº2, alínea c), consagrando-as como tarefa fundamental do Estado e de fazer incumbir ao Estado a criação de reservas e Parques Naturais e de recreio, bem como classificar e proteger paisagens e sítios de modo a garantir a conservação da natureza e a preservação de valores culturais e de interesse histórico ou artístico como direito fundamental dos cidadãos, no artigo 66º, nº2, alínea c), reforçando ainda ser direito e dever de todos, Estado e cidadãos, não só não atentar contra o património cultural como também o defender, impedindo a sua destruição (artigo 78º) – não obstante tudo isto, estamos ainda bem longe de a fruição, o estudo e a preservação do património cultural constituírem verdadeiramente um bem jurídico e um direito fundamental de todos os cidadãos à luz da nossa Lei Fundamental.
Sendo assim tão recente esta nossa nova realidade – que, reitero, nos foi imposta e ainda se encontra tão pouco assimilada e interiorizada – parece-me ser bem diminuta a quantidade de projectos científicos plurianuais a decorrer relativamente ao número das acções de arqueologia preventiva e de emergência que se fazem um pouco por todo o território nacional (mais uma vez, falo de modo impressionista, não sei se haverão números concretos – tê-lo-á a tutela, certamente. Seria interessante saber que percentagem da nossa arqueologia nos últimos anos tem sido dedicada a projectos de investigação, a projectos de valorização, a acções preventivas e a acções de emergência). Para esta relação perigosamente desequilibrada, que corre ao arrepio do que deveria ser a política patrimonial cultural portuguesa, concorre quase que exclusivamente um único factor: o financiamento. Follow the money, dizem os anglo-saxónicos e se há dinheiro (por enquanto...) é no imobiliário e na construção civil pública. Onde não há, é certamente na academia e na tutela.
Se vivêssemos num mundo ideal, estariam já identificados os potenciais arqueológicos de cada parcela do território nacional, emerso ou submerso. Ainda num mundo ideal, o Estado seguiria o que ratificou na Convenção de Malta e adquiriria para si (ou seja, para nós todos, cidadãos) os territórios mais relevantes em termos desse mesmo potencial, ainda na posse dos privados, de modo a constitui-los em reserva arqueológica.
Infelizmente, não vivemos num mundo ideal, vivemos em Portugal, país em que o até o próprio Estado por vezes destrói, ou deixa destruir, com obras suas ou de outrem, o seu património ambiental e/ou cultural.
Vivemos num país em que o dinheiro não abunda, escasseia até, em que a consciência ambiental e cultural de cada um não melhora por decreto, num país em que o pato-bravismo e o arrivismo ainda campeiam por essas terras fora. Ora, neste país real em que vivemos, em que as cartas arqueológicas ainda se encontram muito incompletas ou apresentam grandes zonas em branco (como exemplo, basta ver aquilo que se sabia existir na zona do Alqueva antes do estudo de AIA que se fez aquando da construção da barragem e aquilo que se ficou a saber após a sua execução) é o dinheiro aquilo que faz, por agora, mover a actividade arqueológica. Actividade essa que, como disse mais acima, não corresponde necessariamente à produção de novo conhecimento ou até à protecção e defesa desse património, tanto mais que vivemos uma época conturbada em termos de tutela, tutela essa que foi não só sangrada, tanto em termos financeiros como em recursos humanos, como ficou diminuída em termos hierárquicos, subalternizando-se mais uma vez ao património arquitectónico.
Escrevia o Vítor Oliveira Jorge, em 2000 (na revista da ERA), que as empresas de arqueologia representavam a vontade livre de grupos de cidadãos que se juntavam para, muito legitimamente, quererem ganhar a sua vida fazendo arqueologia, devendo ser profissionais competentes sob pena do o mercado se encarregar de os eliminar. Acautelava, no entanto, que não se poderia colocar a arqueologia a reboque dos poderes económicos, como um mero elemento decorativo, ou como uma desculpa para proceder a uma destruição sem precedentes do património, legitimada agora pela ‘intervenção arqueológica prévia’ que é muitas vezes uma farsa. O mercado não pode ser deixado a si próprio, tem de ser regulado por desígnios nacionais (ou colectivos, a diversas escalas) que compete aos responsáveis político-administrativos executar, ouvidos os técnicos e os cidadãos.
Tu, Miguel, também escreveste sobre a arqueologia que apelidaste de low cost (Al madan nº 14). Disseste que no universo das empresas portuguesas de Arqueologia a procura do lucro sobrepõe-se à observação do interesse nacional da preservação do património, uma sobreposição facilitada pela demissão da tutela em fiscalizar a excelência dos seus resultados e dos seus técnicos.
Pergunto-te, então: será que o mercado está regulado, eliminando os profissionais incompetentes, como preconizava o Vítor Oliveira Jorge há oito anos atrás? Ou será que ainda continuam actuais as perguntas que ele lançava: quem nos paga, porque é que nos paga, quem é que nos está a utilizar e com que fim? Quem somos nós, para que é que servimos?
Será que a arqueologia de salvamento é aquilo que mais nos interessa, enquanto na qualidade de cidadãos interessados e preocupados com o património e não tanto como arqueólogos que se movimentam na arqueologia contratual? Afinal, quem somos nós e para que é que servimos?
Paulo Alexandre Monteiro
11 comentários:
Caro A. Monteiro. Respondendo directamente à sua última pergunta: enquanto cidadãos interessados e preocupados com o património, a arqueologia de salvamento não só nos interessa, como a devemos pensar necessária. Mas não a que, talvez maioritariamente, tem sido feita, nomeadamente ao nível do retorno social que tem proporcionado. Porque este tem sido mauzinho ou nulo (por parte de muitos intervenientes, mas não todos, diga-se em abono da verdade) não devemos precipitadamente questionar a justificação de ser do investimento. Antes, devemos ser mais ambiciosos relativamente à qualidade da sua prática, da sua produção científica e do seu retorno social.
Mas porque a realidade é complexa e multifacetada, essa ambição transcende o meio circunscrito de quem trabalha nessa vertente da prática arqueológica e toca aspectos estruturais da situação de Portugal. Um deles (entre muitos outros igualmente importantes) é, seguramente, a questão da formação (a básica, a secundária e a superior). Sem meios humanos qualificados, técnica, científica, intelectual e eticamente, não há sector que se desenvolva (quer ao nível de quem "produz", quer ao nível de quem "consome"). O mal não está, pois, na lógica e nos fundamentos que justificam essa vertente da prática arqueológica. Os actuais valores do património e da ciência justificam-na.
Parte importante da solução, na minha opinião, está essencialmente na qualificação das pessoas, pois são as suas práticas que fazem as coisas acontecerem (e não somente a sua retórica, embora esta seja importante, porque dos prejuízos da acção "descabeçada" já nós sofremos o bastantes). A prática profissional em Arqueologia, como em qualquer sector profissional, tem que olhar para montante e para juzante se quer resolver os seus problemas, pois depende estruturalmente da área de formação dos seus agentes e do espaço de "consumo" e "valorização social" do que produz. Se isso não acontecer (e não é processo de curto prazo)esta Arqueologia corre, de facto, o risco de não se justificar socialmente. Seguramente, não é o menos de milhar de empregos ou sub empregos que fará a sociedade olhar com sensibilidade par o sector. Os "romantismos" do retorno social e das boas práticas são, no médio e longo prazo, a única via para a sustentabilidade da disciplina, da profissão e para um melhoramento das condições do seu exercício. Ninguém valoriza mediocridade ou o que desconhece e ninguém está disposto a pagar o que não valoriza, por mais códigos canónicos que existam a esse respeito. A retórica do Património e do Conhecimento Científico sem expressão concreta ao nível do retorno social de qualidade não "colhem". A Teoria Social já afirmava isso nos anos 30 do século passado. Mas isso são, naturalmente, "filosofisses". Como dizia um catedrático, uma empresa precisa é de técnicos e não de filósofos. Um discurso com clientela, embora contrário à estratégia recomendada, por exemplo, por Edgar Morin no seu "Pensamento Complexo", e posta em prática pelas principais economias e sistemas sociais mais desenvolvidos do mundo. Contas (ainda) de outro rosário.
Sim, porque filósofos já temos muitos, e falam, falam.........
Normalmente não respondo a anónimos, mas neste caso vou abrir uma excepção (não por causa do anónimo, mas por causa do assunto). Discordo, naturalmente. Temos é filósofos de menos. Todos o devíamos ser um pouco, porque filosofia é antes de mais pensar e aprender a pensar a complexidade das coisas. E gente que saiba pensar e analisar é o que o país precisa. Pior que a não acção é a acção não pensada. E é isso que decorre da afirmação de que os filósofos não são necessários, mas sim técnicos. Ou seja, não é necessário pensamento, apenas um comportamento técnico. E este é, de facto, um dos muitos problemas que se nota na Arqueologia actual: um desempenho técnico não pensado, uma prática repetitiva não pensada, portanto não adequada ao problema, um trabalho cada vez mais mecanizado e tecnocrático. Seria o princípio do fim de qualquer empresa se o que fosse exigido pelo contexto fosse qualidade, capacidade de inovação e competitividade.
Que um dos nossos anónimos não entenda assim as coisas, não me surpreende. Que um responsável universitário também não, já me custa mais.
Nós os portugueses temos aversão à técnica, quando um trabalho tem que ser feito partimos para a interminável discussão de como fazê-lo e já lá vão uns séculos.
Valera os técnicos pensam, têm é que agir porque as máquinas, essas, não pensam. O problema da arqueologia portuguesa, já toda a gente percebeu, é a ganãncia de uns e a falta de tomates de outros.
O trabalho técnico tem que ser mecanizado (com os prazos que se praticam na arqueologia de emergência), mas com inúmeras possibilidades técnicas procurando a que melhor se adapta ao problema (como no desporto).
Às vezes questiono-me se querem qua a arqueologia seja uma ciência ou uma arte.
Pensar?, quando às vezes os arqueólogos nem sabem fazer contas.
Caro anónimo (e, por favor, não me trate por tu se mantém o anonimato - não dou confiança a desconhecidos). Não perca tempo a perguntar: vários cientistas que ganharam o prémio Nobel (da área das ciências mais exactas e não sociais) afirmaram muitas vezes que a ciência é uma forma de arte.
Embora não tenham sido "nóbeis" cito-lhe dois (que se me conhece, como a familiaridade do trato deixa entender, então já deve ter lido, pois cito com frequência):
“No tempo em que eu era um adolescente romântico, acreditava que a minha vida como cientista seria justificada se conseguisse descobrir um único facto novo, juntando desse modo um tijolo ao luminoso templo do conhecimento humano. A aspiração era bastante nobre; a metáfora era pura e simplesmente idiota. E, no entanto, essa metáfora continua a orientar a atitude de muitos cientistas em relação ao seu objecto de estudos. (...)A ciência não é uma busca impiedosa de informação objectiva. É uma actividade criativa humana, em que os seus génios actuam mais como artistas do que como processadores de informações.”
(Stephen Jay Gould, O mundo depois de Darwin. Reflexões
sobre história natural, Ed. Presença, 1988, p.175)
Arte e Ciência não podem deixar de estar estreitamente ligadas entre si. Mostra-o a Tekné dos Gregos e as Artes nas antigas universidades. É a íntima união do sentimento com o conhecimento humanos, formando o entendimento da humanidade."
Almada Negreiros, Tekné, a cabeça da colectividade.
A maioria dos trabalhos de emergência em Portugal não são ciência (a maioria dos agentes que os pratica nem faz ideia do que ela seja). São conjuntos de procedimentos técnicos, quando o são.
Já agora, se tiver pachorra, leia o texto do seguinte link. Talvez lhe seja útil.
http://www.nia-era.org/component/option,com_myblog/show,0072---Da-especializacao-e-mecanizacao.html/Itemid,57/
Não tenho aversão à técnica, apenas à tecnocracia, ainda por cima inconsciente.
Não o conheço e o tempo verbal era você Valera e não tu Valera (mas já vi que todos os pormenorezinhos contam, viva a mesquinhez).
É sempre o mesmo caminho, quando ficamos mais velhos e cansados, começamos a não ter pachorra para trabalhar e aprender, achamos que já sabemos tudo e partimos para o discurso artístico (dou como exemplo o Victor Oliveira Jorge).
Boa, voltamos às élites gregas, enquanto os escravos trabalham, a gente é arte, é técnica, é tudo, o tempo do homem do renascimento acabou (sintoma do macho português), meta isso na cabeça.
Tecnocracia?, por amor de um deus qualquer, o senhor vive e respira tecnocracia, foi educado por ela e trabalha com e para ela (se calhar inconscientemente ou talvez não).
Como a maior parte dos profissionais não sabe o que é ciência (arrogância senhos Valera), o senhor Valera ajuda com a sua filosofia, entretanto o pessoal desiste e o património desaparece. Meta lá um bocadinho de técnica na sua arte (um problema da arte contemporrânea cada vez tem menos técnica, menos trabalho).
Esqueçam lá: pormenorezinhos, élites, senhos, contemporrâneo. Ainda não domino bem a técnica, problema geral da nação.
Não é mesquinhez, é uma questão de educação. Quanto ao resto, vejo que só conhece o meu nome.
Também acho curiosa a referência a que o Víctor Jorge já não quer aprender.
Enfim, haveria tanta coisa para dizer, mas receio que não valha a pena. Fique lá com as sua visão das coisas...
Por acaso, acho sintomático que tenham referido o A. Valera e o VOJ no mesmo comentário. Primeiro, porque são os dois arqueólogos que mais pensam arqueologia. Não conheço o Valera pessoalmente mas "conheço-o" do seu blog Holocénico e desde aí tenho seguido com muito interesse as suas contribuições - que, recordo, ele disponibiliza por todos os meios a quem as quiser aceder. Um ponto para a difusão do pensamento. É um discurso hermético, que tem que se ler demorada e pacientemente, com um canivete suíço na mão esquerda e ferramentas de relojoeiro na direita? É sem dúvida - mas, uma vez aberto e decomposto, é um discurso coerente, límpido e inteligente, que identifica problemáticas, aponta soluções e sugere alternativas.
O VOJ identificou muitos dos problemas com que lidamos hoje em dia, há já mais de uma década. Os seus livros-colectâneas-de-textos são fundamentais para quem dar alguma espessura ao seu discurso e para quem se preocupa realmente com o património e com as mais diversas correntes ideológicas que enformam esse conceito (o VOJ só tem uma pecha e é quando ingressa pela poesia adentro, coisa que já tive oportunidade de lhe dizer.. ;)
Todos têm um papel neste mundo (arqueológico, bloguista)...
Depois metemos os textos muito bonitos numa moldura a dizemos que é património, boa, porque o outro património já se foi, mas escreveram tão bem os meninos quando a casa ardia, pimbas, estou num jardim de narcisicos.
Enviar um comentário