Uma actividade profissional é importante, não porque um conjunto de pessoas precisa de trabalhar e ganhar a vida (todos precisamos), mas porque aquilo que produz é socialmente relevante, isto é, é importante para a maioria das pessoas.
É o património arqueológico importante para a maioria das pessoas? A pergunta poderá ser irrelevante, visto que a lei o afirma como importante e, portanto, daí deveria decorrer que o produto da actividade arqueológica seria socialmente valorizado e a profissão de arqueólogo socialmente bem reconhecida (ou seja bem paga, prestigiante, ambicionada, realizadora).
A pergunta só não é irrelevante porque entre a lei e a realidade social há sempre desajustamentos, quando não contradições. Isto porque a lei não é sempre a transcrição normativa de uma prévia vontade social generalizada, mas é frequentemente um instrumento para a mudança das consciências e necessidades sociais gerais a partir de cima.
É isso que ainda ocorre com o Património Arqueológico. Embora a apetência pública por património, e concretamente pelo Arqueológico, seja cada vez maior, de um modo geral a sociedade portuguesa ainda não o valoriza, ainda não se reconhece nele.
Isso foi evidente, por exemplo, na acção de formação que dei nos Açores, para todo o tipo de pessoas que se cruzaram com questões arqueológicas (tutela local, engenheiros, arquitectos, autarcas, grandes promotores, empreiteiros, pequenos proprietários, autoridades marítimas, professores e alunos universitários, arqueólogos). De facto, o peso do custo da minimização arqueológica, com todos os seus procedimentos técnico científicos adequados, é fortemente agravado pela não valorização do que é feito e dos resultados do que é feito.
A consequência, que temos que saber compreender (o que não significa aceitar), é a resistência, a suspeita, a incompreensão, a busca da alternativa (espertalhona, ou não seja à boa maneira portuguesa), a desesperada tentativa de minimização das despesas em algo que não se valoriza, antes se vê como o capricho de alguns e uma forma de esses alguns terem trabalho. Trata-se de uma questão sociológica e histórica, que não pode ser adjectivada ao acaso.
Por outras palavras, uma abordagem de mercado funciona normalmente num sector que é socialmente valorizado, onde o mercado (leia-se a sociedade), pela sua apetência, procura na medida das suas possibilidades a qualidade, é crietrioso e ele próprio fiscalizador. Mas não se passa isso na sociedade portuguesa em relação à Arqueologia, como não se passa em relação a outros produtos culturais ou questões ambientais.
Neste contexto de desvalorização social de algo consagrado na lei como importante, cabe ao Estado (central e local) zelar pela situação desse algo. Mas não só ao Estado, também aos profissionais das profissões que tratam desse algo. Ou seja, têm que trabalhar no sentido de transformar a Arqueologia (o “algo” de que aqui falo) em actividade socialmente valorizada; trabalhar no sentido que leve a sociedade (tomada no seu conjunto ou nos seus componentes individuais) a olhar para as despesas com o património arqueológico como investimento (e não despesa).
Ou seja, resolver estruturalmente (e não apenas adiando conjunturalmente a chegada ao abismo) os problemas que agora vivemos implica agir no sentido da constituição de um retorno social consistente da actividade arqueológica, que permita o “desenvolvimento sustentado” da valorização social da prática arqueológica. Só assim teremos melhoria da qualidade, melhoria das condições de trabalho, melhoria salarial de modo sustentado. A sociedade só está disponível para pagar o que valoriza e a sustentação administrativa de obrigações não socialmente valorizadas é sempre frágil, conjuntural e refém das flutuações no que é, de facto, socialmente valorizado.
Esta é uma missão da Arqueologia, para que o seu corpo profissional se justifique e, justificado, reclame e receba o que lhe é devido.
Mas este é um processo lento, cujo tempo não é compatível com o tempo de alguns problemas actuais prementes: o problema universitário, o problema empresarial, o problema laboral. Se é evidente que estes problemas decorrem em grande medida daquele primeiro problema de fundo, também é evidente que não podem esperar por alterações de natureza estrutural para se resolverem ou minimizarem, até porque eles são peças centrais nessa mudança estrutural.
Daqui decorre que, se todos devemos perceber que não nos podemos centrar apenas na resolução dos nossos problemas pessoais e colectivos do momento e que devemos quotidianamente contribuir para o desenvolvimento de um trend estrutural (única forma de consolidar a disciplina e a sua prática profissional em termos sociais e, logo, político institucionais), também devemos perceber que este problemas conjunturais têm que ser atacados, pois da sua resolução progressiva depende a nossa capacidade de promover as alterações mais profundas.
Um exemplo da aplicação prática da teoria de Giddens sobre a recursividade da relação entre estrutura e agência: é necessário mudar a atitude da sociedade portuguesa face ao património para que os agentes do património se possam dignificar profissionalmente, mas, como esses agentes jogam um papel fundamental nessa mudança estrutural, temos que ir actuando sobre os problemas que os afectam, de modo a que possam sobreviver e ir actuando na mudança.
A terapia tem que actuar, simultaneamente, a diferentes níveis. E várias pessoas estão a trabalhar (no que alguns consideram tempos livres) nesses vários níveis e na mesma direcção. Num esforço de guerra, é tão combatente o que está na frente, como o que trabalha na fábrica, o que faz diplomacia, o que cultiva. É, contudo, precisa alguma maturidade para perceber isso.
A. Valera
2008-06-14
Problemas estruturais e conjunturais
Temas:
Arqueologia,
Património,
Sociedade
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4 comentários:
"...o problema universitário, o problema empresarial, o problema laboral."
E, naturalmente, também o problema administrativo.
A. Valera
Regularizem a actividade arqueológica começando por dignificar os profissionais. Neste esforço de guerra temos que apoiar os que estão na linha da frente, contra as máquinas e perto da população. Cada vez mais são os desgraçados e os jovens que dão a cara pela arqueologia, estamos a perder profissionais motivados e treinados todos os dias. Criem uma tabela de salários, acusem em praça pública os corruptos, responsabilizem os universitários. Nada disto foi feito até hoje.
Várias pessoas estão a actuar agora porque a situação é extrema, tiveram tempo para regularizar a actividade arqueológica e não fizeram nada (o dinheirinho estava a entrar), mesmo agora não tomam atitudes, apenas analisam a situação, andando em circulos (estilo boby atrás do rabo), o principal problema da arqueologia portuguesa é a falta de profissionalismo e competência dos seus quadros médios e superiores.
Pois, o problema se calhar é estarem a actuar quando deviam estar a agir.
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