2008-04-29

Condições olímpicas

A RTP passa um debate sobre condições laborais. É o acaso que se põe a jeito para que eu recupere um post nado-morto na sequência do debate promovido aqui em Coimbra pelo Ateneu, há alguns dias e mais ou menos sobre o mesmo tema.
Mais ou menos porque agora se debate o novo Código do trabalho — que reconheço ainda não conhecer devidamente — e então discutíamos especificamente o caso particular da Arqueologia. É este que me interessa.

Resultados do Ateneu?
Antes de mais, outra vez uma adesão de participantes muito significativa e... Outra vez as mesmas ausências: a tutela, a Universidade, poucas empresas presentes.
Sinal muito positivo, uma maior presença e sobretudo participação dos arqueólogos mais jovens, aqui mais à vontade do que noutras ocasiões.
Outra nota positiva: o esforço da APA para caracterizar a actividade e o sector profissional da Arqueologia. Um esforço activo, continuado, que porém esbarra frequentemente na nossa desconfiança geral e falta de transparência de que todos, quase sem excepção, vamos fazendo prova. Se tanto se tem falado nos debates recentes de sinais de menoridade do sector da Arqueologia, eis, sem margem para dúvidas, um destes sinais!
Outra nota muito positiva: o debate, anunciado sobre condições de trabalho, acabou por centrar-se decisivamente na qualificação e a ética profissional. Considero bastante promissor que sedimente entre os profissionais do sector a noção que estes problemas (das condições laborais, por um lado, e da qualificação e ética profissional, por outro) não poderão resolver-se de forma desconexa. A solução de um implica a solução do outro!

Mas o que teve de particular o debate do Ateneu neste contexto da Arqueologia foi a presença marcante (anunciada como marcante e efectivamente marcante!) da perspectiva sindical.
E é aqui que entra a comparação com o debate a que agora assisto na televisão.
Sem ousar pronunciar-me sobre a questão das relações laborais a nível global, que, como cidadão, me preocupa deveras, mas ultrapassa os meus conhecimentos objectivos e atrevimento de intervenção, não me parece que possa enquadrar-se aqui directamente o essencial do debate sobre as condições laborais no sector da Arqueologia.
Por exemplo: na famosa discussão relativa à inadaptação a novas técnicas e métodos como fundamento de justa causa de despedimento... Importa talvez não esquecer que a actualização metodológico e científica constante consiste numa obrigação deontológica do arqueólogo. É só um exemplo.

Com efeito, parece evidente que as questões relativas às relações laborais em termos gerais não se reproduzem directamente no sector específico da Arqueologia. Nem os problemas das relações laborais na Arqueologia poderão resolver-se pelos mesmos mecanismos: a discussão geral visa estabelecer parâmetros mínimos de protecção social para trabalhadores em relações de trabalho "proletarizadas", do ponto de vista em que um trabalhador será facilmente substituível por outro.
Ora, penso, antes de mais, que a melhoria das condições laborais na Arqueologia exige precisamente que façamos a opção por um mercado diametralmente diferente. Em que os profissionais do ramo não sejam "fungíveis".
Eis um tema que deveria debater-se neste fórum.
Dir-me-ão que não é esse o caminho actual, ao que respondo sem hesitações que esse é o caminho que tenho feito na instituição em que vivo quotidianamente e que não vejo outro que leve a uma solução.
Para além disso, mau será que num sector da cultura tenhamos por objectivo a definição de relações profissionais por um patamar mínimo. Não deve ser esse o nosso objectivo!
Este anseio, porém, parece surgir hoje muito desligado de uma realidade em que o arqueólogo cobra muitas vezes pela sua hora de trabalho menos do que um trolha; cerca de 8 a 10 vezes menos do que um técnico de restauro; menos pelo seu dia de trabalho do que um advogado mediano por uma consulta de uma hora, etc.
Sem dúvida.
"Exploração do arqueólogo pelo arqueólogo"?... Também. Só que esta exploração não é a causa de todas as nossas maleitas, mas sim já um dos seus efeitos. As causas devem buscar-se (1) na perda de valor social da profissão, que é evidente e até "natural", por força da segunda das causas fundamentais do "estado a que isto chegou": (2) a nossa própria falta de qualificação e (ouso dizê-lo!) sobretudo a nossa incompreensão do papel social que nos cabe. Outro tema útil e muito actual para debate neste momento.

Um sindicato seria favorável?
Talvez, mas quem seriam os sindicalizáveis? Num relance, parece-me que a maioria dos elegíveis para o corpo sindical têm já à sua disposição estruturas sindicais de acolhimento. Os sindicatos da função pública, por exemplo. Isto porque não vejo nas entidades privadas — que funcionam fundamentalmente em regime de prestações de serviços e recibos verdes — uma massa de trabalhadores sindicalizáveis. Os prestadores de serviços, claro, são trabalhadores liberais e, por consequência, são outros os meios de associação profissional que a lei lhes reconhece.
A menos que já não seja este também o entendimento dos próprios sindicatos. Aguardo a vossa resposta.

De qualquer modo, para além de tudo isto, fica deste debate do Ateneu de Coimbra um travo amargo, este muito negativo e que nos põe de sobreaviso em relação à capacidade de intervenção progressiva dos sindicatos nesta questão. O que vimos foi um sindicato colado à Universidade, nomeadamente no que respeita à questão da acreditação profissional. Aliás, mais do que colado, na medida em que penso que as posições defendidas durante o debate nem sequer serão assumidas pelos próprios representantes do meio universitário, eles maioritariamente conscientes de que a sua missão é formar e não profissionalizar. E de que nem para isso teriam meios.
Importa notar que se digo que esta me parece ser a posição dos universitários é porque de facto não posso ter disto senão uma sensação, pois nenhum estava presente para expressar-se.

Ora, esta posição sindical é bastante preocupante, porque deriva não apenas de uma incompreensão da realidade específica da Arqueologia, mas seguramente mesmo de uma insuficiência gritante de reflexão sobre a realidade sócio-profissional da Arqueologia.
Aqui não podem aplicar-se as receitas pré-fabricadas de outros sectores, nem definir-se os objectivos pelos mínimos olímpicos. A nossa ambição é muito superior, e de outra forma a protecção do património histórico-arqueológico não se fará.

1 comentário:

Anónimo disse...

Infelizmente, não me foi possível estar presente em Coimbra no debate do Ateneu, o que lamento, pois certamente estaria muito melhor informado sobre o que aí se discutiu.

Em primeiro lugar, uma breve reflexão (ainda muito pouco aprofundada, é verdade!) sobre a pertinência e/ou a existência de espaço para um sindicato de arqueólogos: tenho muitas dúvidas! Não só porque a conjuntura social, política e económica não é, de momento, nada favorável ao associativismo de natureza sindical ou corporativa, mas, fundamentalmente, porque não há profissionais "sindicalizáveis", como bem aponta o Miguel. Fazer um sindicato com quem?

Não será preferível aproveitar uma estrutura sócio-profissional já existente e contribuir para o seu desenvolvimento e para aumentar a capacidade de intervenção junto da classe e da sociedade? Se a grande maioria de profissionais de arqueologia actualmente existente no nosso país exerce a sua actividade em regime autónomo e sendo uma associação profissional a estrutura à qual compete a sua representação, porque não contribuir efectivamente para dar mais voz e poder à APA?

Em segundo lugar, discordo da interpretação do Miguel a respeito da colagem de um pretenso sindicato à universidade como algo negativo e que deixa um travo amargo: não prevejo que isso venha a acontecer, nem na eventualidade da criação de um sindicato de arqueólogos, porque não são realidades pertencentes ao mesmo universo. Que deva existir uma relação estreita entre as estruturas sócio-profissionais da arqueologia e a universidade, isso só não é extremamente positivo como absolutamente necessário. No entanto, parece que a actual filosofia da universidade consiste em alhear-se cada vez mais dos problemas relativos à formação pós-académica e à organização da profissão, com raras e honrosas excepções. É uma situação reconhecidamente negativa, mas ainda espero que algo se possa modificar nos tempos mais próximos... porque o ensino segundo os moldes da Convenção de Bolonha irá responsabilizar directamente a universidade pela formação académica e profissional.

Aqui reside um dos grandes desafios da arqueologia portuguesa para os anos mais próximos: a efectiva responsabilização da academia pela formação dos futuros profissionais dos diversos sectores de actividade, num contexto em que as diferenças entre os conceitos de formação académica e formação profissional se esbaterão. Este panorama não significa necessariamente que outras entidades não terão oportunidades e responsabilidades nos processos de formação pós-graduada (académica e profissional), já que, num mercado cada vez mais competitivo e aberto, será exigido aos profissionais uma constante actualização das suas competências. O que quero afirmar é que numa "Europa de Bolonha" a responsabilidade pela certificação profissional caberá às universidades (excluindo-se apenas aquelas áreas profissionais que já contam com organizações sócio-profissionais públicas que as regulam).

Não vendo como poderá a Arqueologia algum dia vir a beneficiar da prerrogativa da auto-regulação, não vendo, igualmente, como poderá o Ministério da Cultura continuar a certificar os arqueólogos nos moldes em que o tem feito até hoje (porque se instaurará um procedimento de dupla certificação que, no mínimo, provocará alguns constrangimentos jurídicos), então teremos que assumir que o título de arqueólogo será outorgado com a conclusão da formação específica de base, o que, com a oferta actualmente existente, corresponderá ao diploma de 1º ciclo (este é um tema que podemos desenvolver mais tarde, noutro debate).

Assim sendo, devemos trabalhar em conjunto com as universidades para melhorar a formação dos profissionais de arqueologia, sobretudo ao nível da formação básica. Depois, competirá às empresas (volto a repetir: às empresas!) regular o mercado e proporcionar a actualização permanente dos profissionais que são a sua força de trabalho. Em conjunto com a APA (ou outra organização ou organizações sócio-profissionais que, entretanto, venham a ser criadas), as empresas também têm que assumir de uma vez por todas a sua quota-parte de responsabilidade no processo de melhoramento das competências técnicas dos profissionais que fazem da Arqueologia o seu ganha-pão, tal como se passa em outros sectores de actividade.