Estou no Encontro “Arqueologia e autarquias”.
Pareceu-me, desde o início, uma organização um pouco arriscada, mas extremamente importante para o futuro da Arqueologia portuguesa. O risco foi assumido pela autarquia de Cascais, em colaboração com a APA e a aposta já está ganha, quanto mais não fosse pelo volume de participações de autarquias de norte a sul do país. Parabéns aos organizadores. E obrigado!
Entre as muitas coisas que se discutiram no primeiro dia, destaco a questão da protecção legal do património arqueológico que ainda não esteja inventariado nem classificado.
Para todos os que trabalham na área da Arqueologia de salvamento ou na gestão e ordenamento do território, a questão é velha e decorre da especificidade do património arqueológico no quadro do património cultural tout court, no qual, necessariamente, a sua protecção tem que enquadrar-se.
Resuma-se o problema em duas premissas e uma questão: (1) estando a protecção legal deste património arqueológico garantida por dois institutos legais expressos na Lei de Bases do Património Cultural (a classificação e a inventariação), mas (2) sendo por natureza deste património impossível inventariar a vasta maioria das suas ocorrências (que ainda não são conhecidas por permanecerem soterradas e, eventualmente, sem representação, pelo menos conhecida, à superfície), (3) como garantir a protecção efectiva destas novas ocorrências do património arqueológico.
Trata-se, com efeito, de um problema com uma multitude de matizes e imensas implicações. Por exemplo, por ser uma das mais evidentes, poderá subordinar-se esta protecção do património arqueológico à sua inscrição em instrumentos de ordenamento do território (maxime os PDM), recurso que na falta de regulamentação da 107/2001 temos utilizado repetidamente? Não. E repito: não! Porque fazê-lo seria menorizar a importância decisiva daquele interesse fundamental do Estado na preservação do património arqueológico.
Mas, obviamente, não poderá deixar de proteger-se um património cuja única pecha será a de ainda não ter sido descoberto. Impõe-se algum rigor na leitura da situação: no caso do património cultural, a contrario de outras dimensões do património cultural, o que se protege na lei não é a descoberta, mas sim o património em si. Ou seja, o que aqui está em causa não é em primeiro lugar o interesse particular (e eventualmente público) da protecção da criação cultural, mas sim o interesse público FUNDAMENTAL da preservação da memória histórica.
Então, como resolver esta dificuldade de garantir a protecção de um património que, por definição, já existe, mas nos é ainda na sua maioria desconhecido?
O problema é de muito difícil solução em sede legislativa. E com isto se defrontou o legislador da dita lei de bases, 107/2001. Que soluções encontramos na lei?
Bom, o legislador não foi de meias medidas e a sua intenção é muito clara:
- Fica expressa a imposição de preservação PELO MENOS pelo registo de TODO o património arqueológico:
- Qual é este património a proteger? Ele surge caracterizado no nº 1 do artº 74º:
(artº 74º, nº 1: Integram o património arqueológico e paleontológico todos os vestígios, bens e outros indícios da evolução do planeta, da vida e dos seres humanos:
- Cuja preservação e estudo permitam traçar a história da vida e da humanidade e a sua relação com o ambiente;
- Cuja principal fonte de informação seja constituída por escavações, prospecções, descobertas ou outros métodos de pesquisa relacionados com o ser humano e o ambiente que o rodeia);
- E tipificado no nº2 do mesmo 74º: ….
(artº 74º, nº 2: O património arqueológico integra depósitos estratificados, estruturas, construções, agrupamentos arquitectónicos, sítios valorizados, bens móveis e monumentos de outra natureza, bem como o respectivo contexto, quer estejam localizados em meio rural ou urbano, no solo, subsolo ou em meio submerso, no mar territorial ou na plataforma continental).
Nunca neste artº 74º que define qual o património arqueológico a proteger se faz referência à sua inventariação ou classificação. A única interpretação admitida pelo texto é a de que o legislador pretendeu PROTEGER EFECTIVAMENTE TODO O PATRIMÓNIO ARQUEOLÓGICO, independentemente de estar já classificado ou não.
Caso contrário, em vez das complexas formas estabelecidas naqueles nº 1 e 2 do 74º ter-se-ia pura e simplesmente estatuído: “Constituem património arqueológico todos os elementos patrimoniais incluídos em inventário ou classificação histórica”.
Não foi esta a solução e não foi por acaso, mas sim por ser a única solução para… proteger o património arqueológico que não está inventariado nem classificado.
A letra da lei não admite outra interpretação. Esta protecção não se confunde, não compete, nem depende da inscrição em inventário ou classificação. Complementa estes outros graus de protecção, obviamente reforçada, para permitir precisamente a protecção de novas ocorrências de património a proteger.
Outra discussão — bem distinta desta, que se coloca na interpretação de uma lei de bases, documento normativo de intenção marcadamente programática — é a que respeita à aplicabilidade prática desta intenção no momento actual. Esta, de forma muito evidente, enferma de dois fortes handicaps:
- Por um lado, da inenarrável falta de regulamentação da lei 107/2001, sete anos passados;
- Por outro lado, de uma prática administrativa que de facto foi sempre titubeante na interpretação destes preceitos do 74º e 75º artigos da lei.
Quase como se tivéssemos que pedir por favor para proteger o património quando no equilíbrio do jogo de interesses sociais antagónicos que se opera no nosso estado de Direito por via dos instrumentos legais o legislador já estatuiu em sede de lei de bases em favor indiscutível da preservação do património.
É nossa obrigação social cumprir esta intenção… e obrigação profissional promover o seu cumprimento por todos!
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