2008-05-31

A acrópole de Lisboa

Do alto do seu saber, o técnico ignora olimpicamente os espectadores e o cano de esgoto rebentado pela máquina. De picareta em riste, avalia os materiais espalhados aos pés e planeia onde desferir o próximo golpe. Os níveis são de aterro, o rio infiltra-se já pelo areão grosso subjacente e, a toda a volta, turistas, locais e transeuntes citadinos, comprimem-se de encontro à rede que rodeia o sítio, uma qualquer rua anódina de Lisboa. De repente, do meio da mole espectadora e expectante, eleva-se uma voz mais douta:

“Isso, aí, se escavar por aí abaixo, vai dar com a acrópole”.


Ora cá está algo novo. Habituado apenas a pescadores à entrada e à saída dos portos e a escavações em meios bem mais encharcados do que o fundo enlameado daquela quadrícula, com os peixes por únicas testemunhas desinteressadas, é com surpresa que constato a basta quantidade de pessoas que param junto à cerca e que ficam a observar, a fotografar, a comentar, a reclamar ou, tão só, a opinar. Mas algo em comum têm estes “mirones” urbanos com os marítimos: se há arqueólogos a escavar é porque há tesouros. Ou, quando não, há necrópoles transvestidas em acrópoles.

O que quase nunca há é um cartaz explicativo, uma planta do sítio, uma declaração de intenções, um guia interpretativo. Quase nunca há algo ou alguém que elucide quem passa ou quem por lá mora do que é que ali se faz, e porque é que se está ali, a “empatar a obra”, a “abrir mais buracos na estrada”, a “estragar os caboucos dos prédios vizinhos”, a “espatifar o dinheiro da Cambra” a abrir buracos que ninguém percebe para que são, se nem moedas de lá saem, quanto mais barras de prata ou sarcófagos em ouro, só cacos velhos e ossos queimados que uns maluquinhos guardam religiosamente em sacos, como se não tivessem algo mais importante que fazer.

Afinal, para quem escavamos nós?

Escavamos para nós ou para a comunidade na qual nos inserimos - bairro, freguesia, concelho, distrito, país? Escrevemos nós (quando escrevemos) para os nossos pares ou para o público em geral? Para que se faz arqueologia em Portugal e para quem? Será irrelevante esta questão?

Paulo Alexandre Monteiro

3 comentários:

Anónimo disse...

Faz-se arqueologia de emergência para (pelo menos) deixar registado aquilo que de outro modo vai ser destruido.

Alexandre disse...

E será que a arqueologia de emergência terá que fatalmente ser realizada? Será que não há outras opções? Será que a arqueologia portuguesa não anda a reboque das escavações de emergência, apesar de serem feitas sem que hajam questões científicas colocadas anteriormente às quais essa escavação possa responder - se calhar até porque dá muito jeito aos arqueólogos, que as fazem, fazê-las?

Anónimo disse...

Caro Alexandre, antes de mais, uma clarificação conceptual: se bem percebo, aquilo a que aqui se faz alusão como Arqueologia "de emergência" é na verdade a Arqueologia de salvamento.
Isto pode até parecer uma bizantinice, mas não é.
Na Arqueologia de salvamento há duas vertentes distintas: emergência e... prevenção.
Aliás, a distinção é tão clara que até a legislação a consagra, na medida em que correspondem a categorias distintas de trabalhos arqueológicos (categoria C e categoria D), de resto com procedimentos administrativos muito distintos.
E é muito importante que se compreenda a distinção porque, evidentemente(!), um dos índices de qualidade na preservação do património é precisamente a relação entre as intervenções preventivas e de emergência. As intervenções preventivas devem ser cada vez mais: sinal de que (1) o investimento na Arqueologia é maior e de que (2) os Arqueólogos intervêm a montante, e não a jusante, das ameaças de destruição. E as intervenções de emergência devem ser cada vez menos: sinal de que (1) as intervenções preventivas precedentes acertaram na avaliação da sensibilidade e riscos arqueológicos e na proposição de medidas de minimização e de que (2) essas medidas foram efectivamente implementadas. Pelo contrário, oito ou nove em cada dez intervenções de emergência resultam de um qualquer erro (técnico ou administrativo) anterior e apenas uma percentagem minoritária consistirá efectivamente de casos imprevisíveis.

Agora a confusão que não deve fazer-se é que as intervenções de salvamento são (/deveriam ser) justificadas por problemáticas científicas!
A definição de "salvamento arqueológico" consiste precisamente num trabalho que não é determinado por um questionamento científico, mas sim por uma imposição de preservação (ainda que, em última análise, apenas preservação pelo registo) de um património que de outra forma se perderá inelutavelmente.
A menos que... deixássemos de fazer obras!

Se as intervenções de salvamento dão muito jeito aos arqueólogos que trabalham em salvamento? Sim(!), como os projectos dão jeito aos que trabalham em investigação.
Acho por isso falacioso, e até muito perigoso, afirmar que se fazem demasiadas intervenções de salvamento só para "encher a pança" de arqueólogos.
Concordo que a Arqueologia portuguesa anda um pouco a reboque do salvamento, mas não é porque haja salvamento a mais. É porque há investigação a menos!
Já agora, há investigação a menos por uma infeliz conjugação de dois factores: falta de investimento suficiente e falta de investigadores capazes.
Mas isto já é outra discussão.

Finalmente, perguntas se esta Arqueologia de salvamento terá fatalmente que ser realizada?
Bem... FATALMENTE... Não!
Com efeito, podemos escolher destruir sem registo. É sempre uma opção.
E nota que para quem se revê numa sociedade de tipo democrático é forçoso reconhecer que até esta opção pela destruição sem registo é lícita, desde que sustentada pela maioria. É por isoo que, mais uma vez, me parece perigoso que sejamos nós próprios a pôr em causa a necessidade do salvamento arqueológico: alguém pode ouvir.
O que não vejo é quais são as outras opções a que te referes?