2008-09-26

Dois sentidos, na mesma direcção… do umbigo!

Este primeiro dia do congresso ainda me motiva outra reflexão.
Pese se tenha necessariamente falado frequentemente de empresas, quando passo os olhos pelo programa de trabalhos vejo que o Encontro se encerrará com uma mesa redonda sobre o tema "As autarquias e os outros: relação da Arqueologia municipal com...". E lá estão estes "outros", todos representados: "a administração central e regional, universidades, museus e associações de defesa do património.
Não sei se nesta lista nada vos parece estranho, mas pessoalmente penso que a ausência de "relação" com as empresas de Arqueologia constitui um silêncio... ensurdecedor!
São apenas as entidades com maior volume de trabalhos arqueológicos a nível nacional.
Note-se, não se trata aqui de uma crítica à organização, que desde já saúdo por uma iniciativa muito importante, que é já um sucesso. É apenas uma constatação.
Aliás, na mesma direcção, mas em sentido inverso, eram raríssimas as empresas representadas na sala. Contei duas, salvo erro pelo qual me penitencio desde já. Como se também nas empresas não se achasse fundamental esta relação com as autarquias.
A conclusão não pode ser senão a de que a Arqueologia portuguesa continua a funcionar em compartimentos estanques.
Ora alterar este quotidiano em que todos continuam de olhos postos no próprio umbigo e, por consequência, incapazes de compreender (e até de ver!) os demais, para reflectir de uma perspectiva global sobre o meio, parece-me um dos primeiros passos a dar para corrigir muitas das disfunções actuais da Arqueologia nacional.
Curiosamente, está em preparação também um "Congresso de Arqueologia empresarial". Fico em pulgas para saber se aí estarão representadas as autarquias... e a tutela do estado, e a administração regional, e as universidades, e os museus, e as associações...

Património: a protecção antes da inventariação / classificação

Estou no Encontro “Arqueologia e autarquias”.
Pareceu-me, desde o início, uma organização um pouco arriscada, mas extremamente importante para o futuro da Arqueologia portuguesa. O risco foi assumido pela autarquia de Cascais, em colaboração com a APA e a aposta já está ganha, quanto mais não fosse pelo volume de participações de autarquias de norte a sul do país. Parabéns aos organizadores. E obrigado!
Entre as muitas coisas que se discutiram no primeiro dia, destaco a questão da protecção legal do património arqueológico que ainda não esteja inventariado nem classificado.
Para todos os que trabalham na área da Arqueologia de salvamento ou na gestão e ordenamento do território, a questão é velha e decorre da especificidade do património arqueológico no quadro do património cultural tout court, no qual, necessariamente, a sua protecção tem que enquadrar-se.
Resuma-se o problema em duas premissas e uma questão: (1) estando a protecção legal deste património arqueológico garantida por dois institutos legais expressos na Lei de Bases do Património Cultural (a classificação e a inventariação), mas (2) sendo por natureza deste património impossível inventariar a vasta maioria das suas ocorrências (que ainda não são conhecidas por permanecerem soterradas e, eventualmente, sem representação, pelo menos conhecida, à superfície), (3) como garantir a protecção efectiva destas novas ocorrências do património arqueológico.
Trata-se, com efeito, de um problema com uma multitude de matizes e imensas implicações. Por exemplo, por ser uma das mais evidentes, poderá subordinar-se esta protecção do património arqueológico à sua inscrição em instrumentos de ordenamento do território (maxime os PDM), recurso que na falta de regulamentação da 107/2001 temos utilizado repetidamente? Não. E repito: não! Porque fazê-lo seria menorizar a importância decisiva daquele interesse fundamental do Estado na preservação do património arqueológico.
Mas, obviamente, não poderá deixar de proteger-se um património cuja única pecha será a de ainda não ter sido descoberto. Impõe-se algum rigor na leitura da situação: no caso do património cultural, a contrario de outras dimensões do património cultural, o que se protege na lei não é a descoberta, mas sim o património em si. Ou seja, o que aqui está em causa não é em primeiro lugar o interesse particular (e eventualmente público) da protecção da criação cultural, mas sim o interesse público FUNDAMENTAL da preservação da memória histórica.
Então, como resolver esta dificuldade de garantir a protecção de um património que, por definição, já existe, mas nos é ainda na sua maioria desconhecido?
O problema é de muito difícil solução em sede legislativa. E com isto se defrontou o legislador da dita lei de bases, 107/2001. Que soluções encontramos na lei?
Bom, o legislador não foi de meias medidas e a sua intenção é muito clara:
- Fica expressa a imposição de preservação PELO MENOS pelo registo de TODO o património arqueológico:

(artº 75º, nº 1: Aos bens arqueológicos será desde logo aplicável, nos termos da lei, o princípio da conservação pelo registo científico);

- Qual é este património a proteger? Ele surge caracterizado no nº 1 do artº 74º:

(artº 74º, nº 1: Integram o património arqueológico e paleontológico todos os vestígios, bens e outros indícios da evolução do planeta, da vida e dos seres humanos:
- Cuja preservação e estudo permitam traçar a história da vida e da humanidade e a sua relação com o ambiente;

- Cuja principal fonte de informação seja constituída por escavações, prospecções, descobertas ou outros métodos de pesquisa relacionados com o ser humano e o ambiente que o rodeia);

- E tipificado no nº2 do mesmo 74º: ….

(artº 74º, nº 2: O património arqueológico integra depósitos estratificados, estruturas, construções, agrupamentos arquitectónicos, sítios valorizados, bens móveis e monumentos de outra natureza, bem como o respectivo contexto, quer estejam localizados em meio rural ou urbano, no solo, subsolo ou em meio submerso, no mar territorial ou na plataforma continental).

Nunca neste artº 74º que define qual o património arqueológico a proteger se faz referência à sua inventariação ou classificação. A única interpretação admitida pelo texto é a de que o legislador pretendeu PROTEGER EFECTIVAMENTE TODO O PATRIMÓNIO ARQUEOLÓGICO, independentemente de estar já classificado ou não.
Caso contrário, em vez das complexas formas estabelecidas naqueles nº 1 e 2 do 74º ter-se-ia pura e simplesmente estatuído: “Constituem património arqueológico todos os elementos patrimoniais incluídos em inventário ou classificação histórica”.
Não foi esta a solução e não foi por acaso, mas sim por ser a única solução para… proteger o património arqueológico que não está inventariado nem classificado.
A letra da lei não admite outra interpretação. Esta protecção não se confunde, não compete, nem depende da inscrição em inventário ou classificação. Complementa estes outros graus de protecção, obviamente reforçada, para permitir precisamente a protecção de novas ocorrências de património a proteger.
Outra discussão — bem distinta desta, que se coloca na interpretação de uma lei de bases, documento normativo de intenção marcadamente programática — é a que respeita à aplicabilidade prática desta intenção no momento actual. Esta, de forma muito evidente, enferma de dois fortes handicaps:
- Por um lado, da inenarrável falta de regulamentação da lei 107/2001, sete anos passados;
- Por outro lado, de uma prática administrativa que de facto foi sempre titubeante na interpretação destes preceitos do 74º e 75º artigos da lei.
Quase como se tivéssemos que pedir por favor para proteger o património quando no equilíbrio do jogo de interesses sociais antagónicos que se opera no nosso estado de Direito por via dos instrumentos legais o legislador já estatuiu em sede de lei de bases em favor indiscutível da preservação do património.
É nossa obrigação social cumprir esta intenção… e obrigação profissional promover o seu cumprimento por todos!

2008-09-08

Revisão RTA

Felizmente este nosso blogue tem estado bastante parado. Digo felizmente, porque quererá dizer que todos temos trabalho demais. Mas Setembro é o mês de retomar a rotina do ano e, por isso, também do blogue. Entre as muitas coisas que haveria a comentar, gostaria de relançar aqui a discussão sobre o Regulamento de Trabalhos Arqueológicos, cuja revisão está em curso. Esta discussão também está aberta no blogue da APA - Associação Profissional de Arqueólogos (http://documentosapa.blogspot.com/2008/05/reviso-do-regulamento-de-trabalhos.html), sem que até agora tenha merecido muitas participações. E deveria, porque se trata de uma questão estruturante para o futuro da Arqueologia em Portugal. Reproduzo por isso na íntegra o comentário que aí fiz hoje mesmo.

Como diz o Jorge Raposo numa das (poucas) intervenções que esta questão suscitou no blogue proposto pela APA, trata-se ainda de um documento muito genérico e com o qual pouco mais se pode fazer do que… concordar na generalidade. De qualquer modo, importa começar por dizer que concordo claramente com o rol dos problemas discutidos. Estes constituem os pontos fundamentais para o futuro da actividade arqueológica em Portugal. Alinho, entretanto, algumas observações, que seguem a estruturação por pontos do texto original:

1.1
Concordo com a crítica relativa à necessidade de uma definição mais rigorosa dos tipos de trabalhos de Arqueologia, mas esta definição não deve surgir (nem pode substituir!) este artº 2º. A definição deste artigo é intencionalmente genérica, abrangente e sem carácter descritivo. Pelo contrário, se se optar por uma redacção de enumeração (“são considerados trabalhos arqueológicos: o acompanhamento arqueológico, a escavação, etc, etc.), ficará aberta a discussão sobre a integração de um sem número de situações possíveis (e, por definição, impossíveis de enumerar e descrever exaustivamente) numa ou noutra das categorias enumeradas… ou em nenhuma! Com todas as consequências nefastas possíveis.
Este preceito geral não pode portanto deixar de ter um carácter abrangente e não descritivo.
Outro problema, é a dita necessidade de tipificação das diferentes “espécies” de trabalhos arqueológicos. É indispensável, mas deverá ser incluída posteriormente, noutra secção deste regulamento.

1.3
Não estou muito certo de que seja preciso mexer demasiado nesta categorização. De facto, há um limite para os trabalhos relacionados com a Arqueologia e o material arqueológico que necessitam de autorização — caso contrário seria necessária autorização também para abrir a vitrina e passar o espanador. Deve discutir-se onde passa esse limite da necessidade de autorização. Só depois surge a discussão da necessidade de outra categoria. Quanto aos trabalhos intrusivos, a que esta categorização se destina primordialmente, parece-me genericamente uma boa solução.
Não obstante, estou de acordo que há aqui alguns conceitos um pouco vagos a concretizar, como por exemplo a referência na Cat. B aos “projectos de valorização”.

1.4
Um ponto fundamental.
No actual RTA introduziu-se como norma prospectiva da maior importância o artº 9, relativo à escavação de necrópoles. Esta norma, que desempenhou honrosamente a sua função, está hoje ultrapassada pelos acontecimentos e urge remodelá-la, aprofundando a intenção do legislador inicial.
Com efeito, o tratamento dado ao registo osteoarqueológico continua a constituir um problema premente, visto que continua a ser vandalizado diariamente pela comunidade arqueológica, mesmo por vezes com a participação (às vezes pouco mais do que teórica!) de “especialistas em Antropologia física”.
Proponho por isso uma profunda alteração deste artº, para uma redacção do género da seguinte:
1. A escavação de necrópoles onde se presume venha a ser encontrado espólio antropológico só será autorizada caso a equipa técnica integre como co-director da intervenção um especialista em Arqueotanatologia..
2. A presença no terreno do co-director de Arqueotanatologia é indispensável durante a totalidade da duração dos trabalhos de escavação e recuperação dos vestígios osteoarqueológicos. 3. Nos casos em que o espólio antropológico surja inesperadamente durante a execução de uma intervenção arqueológica, a prossecução dos trabalhos fica condicionada à inclusão expressa de um especialista de Arquetanatologia na equipa de Arqueologia.
4. A autorização para a realização de escavações em cemitérios históricos só será concedida se os promotores comprovarem que a realização desses trabalhos merece a concordância das autoridades responsáveis.
Notas importantes:
- No caso específico das necrópoles, não é suficiente a participação de especialistas. Por força da relevância primordial do registo osteoarqueológico nestes contextos impõe-se a co-direcção da intervenção;
- Por outro lado, devem prever-se os critérios de acesso a este estatuto de “especialista”, para, como antes, não incluirmos no regulamento conceitos não especificados;
- “Arqueotanatologia” porque a prática revelou insuficiente a anterior referência a especialistas de “Antropologia física”, na medida em que a norma visa sobre tudo salvaguardar a qualidade dos trabalhos de recuperação no terreno do espólio osteoarqueológico. Também me parece já assumido pela generalidade dos antropólogos capazes deste país (e foi bem difícil espalhar a boa nova por todos!) que se não pode admitir o estudo dito(!) antropológico de colecções de que se desconhece a história tafonómica (salvaguardado, claro, o estudo possível de séries procedentes de escavações antigas).
- Tal como no caso dos arqueólogos directores, a presença continuada no terreno é indispensável.

2.1
Outra questão fulcral. Claro que a separação dos diferentes níveis de “autorização”, “credenciação”, etc. não foi incluída no RTA de 1997 por… graves insuficiências da realidade com o legislador então se deparava no sector profissional e económico da Arqueologia.
Penso que, pese embora a situação difícil actual a que o preâmbulo do documento da APA faz referência, a que deve ainda juntar-se uma degradação progressiva da qualidade da formação (bom, para ser mais rigoroso, uma quase estagnação, que nos conceitos actualmente em vogo nos coloca “em divergência com a média europeia”), talvez estes dez anos tenham trazido em relação a este problema particular algum amadurecimento. O que pode permitir intentar a inclusão de uma solução (ou pelo menos de uma pré-solução) numa próxima revisão do RTA.
Mas a questão deve ser vista de uma perspectiva bastante abrangente e, neste sentido, não poderá deixar de incluir o problema da diversidade de “responsabilidades” na realização das intervenções de Arqueologia, que o documento da APA muito bem foca no ponto 3. Trata-se aqui, claro, da credenciação das entidades colectivas (empresas ou outras) que sustentam administrativa, logística e financeiramente as intervenções de Arqueologia. Problema bem difícil de resolver, mas decisivo para o futuro da Arqueologia em Portugal.
Assim, penso que antes de mais importa estabelecer rigorosamente a terminologia dos conceitos a aplicar.
Recupero aqui a proposta que já fiz no blogue da Al-Madan:

“(…) Importa não confundir a ACREDITAÇÃO DAS EMPRESAS (controlo prévio da sua capacidade para a realização de trabalhos de Arqueologia -- e quais tipos de trabalhos), com a CREDENCIAÇÃO DOS ARQUEÓLOGOS (controlo ainda prévio e genérico da capacidade individual para a realização de trabalhos de Arqueologia) e AUTORIZAÇÃO PARA INTERVENÇÕES CONCRETAS (controlo, sempre prévio, da adequação de um determinado plano de intervenção à execução de um trabalho arqueológico específico, sobre um sítio determinado).

Para lá do objectivo geral de preservação do património histórico-arqueológico, procurando evitar-se preventivamente que empresas e/ou arqueólogos sem condições materiais ou capacidade técnica provoquem perdas deste património, os valores e interesses protegidos por estes três tipos de fiscalização a priori são claramente distintos.
Simplificando um pouco:

- A CREDENCIAÇÃO DOS ARQUEÓLOGOS, vulgo "carteira profissional" visa antes de mais (1) proteger corporativamente a classe profissional dos arqueólogos, quer no seu interesse individual de garantir a exclusividade da execução de trabalhos de Arqueologia por técnicos especializados, quer (2) no seu interesse colectivo de proteger a imagem social da qualificação deste sector profissional, nomeadamente através da imposição de um código deontológico da profissão;

- A ACREDITAÇÃO DAS EMPRESAS visa: (1) proteger a segurança da actividade económica, garantindo aos diversos agentes económicos que as empresas acreditadas são capazes de executar um serviço para o qual se apresentam no mercado (dispondo para isso de meios materiais, financeiros, equipamento, meios humano e organização suficientes); e, no caso de se optar por um sistema de acreditações discriminantes (por período cronológico, por tipo de trabalho, etc.), (2) promover que os trabalhos de Arqueologia a realizar serão tendencialmente executados pelas equipas que são mais capazes para cada um dos ditos critérios discriminantes;

- Finalmente, a AUTORIZAÇÃO PARA REALIZAÇÃO DE INTERVENÇÕES ARQUEOLÓGICAS CONCRETAS visa sobretudo (1) proteger o interesse público da gestão correcta do património histórico-arqueológico do país, permitindo uma avaliação caso-a-caso quer da justificação da afectação daquele património, quer da adequação dos meios e métodos propostos pelo(s) responsável(/is) técnico(s) da futura intervenção.

Duas notas finais:
1. Obviamente, decorre dos objectivos e dos interesses a proteger por cada um dos mecanismos descritos que a acreditação das empresas e a autorização casuística dos trabalhos devem manter-se na esfera de decisão pública, enquanto a credenciação profissional dos arqueólogos deveria idealmente evoluir para uma estrutura associativa de cariz profissional.
2. Até hoje, revelámos uma incapacidade gritante de criar procedimentos administrativos e estruturas associativas capazes de acreditar empresas e credenciar arqueólogos. Não obstante, isto não significa que a necessidade destas credenciações e acreditações não exista. Em consequência, como solução de recurso, atribuímos ambas estas responsabilidades ao mecanismo da autorização casuística, por exemplo com o procedimento bastante híbrido da necessidade de um primeiro pedido ser apresentado em colaboração com um arqueólogo mais experimentado. Estas soluções, que têm uma data e uma justificação conjuntural clara, estavam a médio prazo votadas a um fracasso inelutável.
Devemos hoje avançar no sentido de institucionalizar aqueles outros procedimentos de forma cristalina.

Em resumo:
1. não penso haver qualquer sobreposição entre credenciação profissional, acreditação de empresas e autorização de intervenção; e
2. em minha opinião, no momento actual da Arqueologia portuguesa, todos os três mecanismos são indispensáveis. (…)”

Se actualmente ainda parece difícil resolver este problema em sede de RTA (desde logo, mais uma vez, por força do carácter incipiente da organização profissional dos arqueólogos), penso que a APA poderá lutar pela inclusão de uma norma de carácter prospectivo que, precisamente:
(1) estatua a questão da autorização casuística; e
(2) preveja a criação de um mecanismo de credenciação de tipo “carteira profissional”; seria um passo de gigante no sentido desta ambição central da actividade da associação.

2.2
Uma questão comum a todas as ordens profissionais, com duas vertentes: os critérios de acesso à “carteira profissional” e a questão da graduação profissional.
Em relação à primeira, concordo que, no momento actual, não pode resolver-se senão em termos de formação académica. Esta situação deveria, porém, evoluir noutro sentido, mas trata-se já aqui de um caminho a percorrer pela APA que nada influi nesta revisão do RTA.
Em relação à questão da graduação profissional, já estão realizadas algumas experiências noutros sectores profissionais. O problema no caso específico da Arqueologia consiste na definição dos efeitos de uma tal graduação, quer dizer: depois de decidirmos quais os critérios de acesso a “arqueólogo de 1ª”, “de 2ª”, etc (ou outra classificação qualquer), a dificuldade maior está em decidir quais as consequências de ter um ou outro estatuto.
A meu ver, importa sobretudo evitar a ideia (recorrente!) de que há tipos de trabalho arqueológico (por ex. a prospecção, o acompanhamento) mais “fáceis” do que outros, e que serão estes a entregar aos arqueólogos pouco experientes. É mesmo uma ideia que me tira do sério esta de pensar que se podem pôr uns licenciados fresquinhos à frente de uma D12 perdida no desaterro de uma auto-estrada, ou mandá-los para o meio dos pinhais procurar cacos e pedrinhas. Estes estão entre os trabalhos mais difíceis da profissão. No INRAP (França), por exemplo, os diagnósticos são sistematicamente feitos pelos arqueólogos mais capazes que eles têm no campo. Não admira: é preciso conhecer tudo de todas as épocas! Assim, penso que dizer que basta ter três aninhos de faculdade e mais umas semanas de campo é capaz de ser exigência a menos para este tipo de coisa. Ou seja: desagrada-me profundamente uma classificação dos tipos de trabalhos de Arqueologia em “mais importante” / “menos importante”, ou em “mais fácil” / “mais difícil”. Penso que importa evitar este tipo de solução, como digo, recorrente, mas um pouco facilitista.

3.1
Já discutido antes, a respeito do ponto 2:
- AUTORIZAÇÃO técnica/científica, casuística, concedida a pessoas individuais, técnicos capacitados (cuja capacidade, justamente, deve tender a avalia-se através da titularidade de uma carteira profissional!);
- ACREDITAÇÃO orgânica, de carácter geral, com validade determinada, reconhecida a pessoas colectivas, com base na demonstração de meios técnicos, materiais, financeiros e humanos.
3.1.1
Completamente de acordo. De resto, esta presunção de que a responsabilidade técnica de uma intervenção deve ser exclusiva de UM arqueólogo até me parece totalmente desfasada da realidade generalizada.
Entretanto, há aqui uma ideia que resulta da prática, nomeadamente em contexto de Arqueologia de salvamento, que me parece ser interessante. A figura do coordenador científico.
Com efeito, esta figura tem vindo a ser utilizada por uma multitude de empresas de Arqueologia, com fins muito distintos e com graus de institucionalização (dentro das empresas, claro, porque a figura é inexistente na lei!).
No estado actual das coisas, parece-me uma figura bastante perigosa, porque serve em muitos casos apenas para justificar a ausência do campo do titular da autorização, assim erigido em “coordenador”. Porém, penso que a figura pode ser interessante se ficar definido que não é ao coordenador que cabe a execução quotidiana dos trabalhos, mas sim ao arqueólogo-director. Cabendo ao dito coordenador apenas uma responsabilidade de conselho científico. Não seria o CV do “coordenador” a ser avaliado para a autorização dos trabalhos. Ou melhor, avaliar-se-ia a capacidade técnica do director e a capacidade científica do coordenador para cada intervenção específica. Penso que se pode ganhar em enquadramento científico das intervenções de salvamento, aproveitando de passagem para regularizar uma situação que está instalada de facto e que corresponde, como disse, a intenções muito díspares.
3.1.2
Estando completamente de acordo com esta separação, que sempre defendi, interrogo-me sobre qual será o âmbito das normas sobre esta “responsabilidade institucional” a incluir num “Regulamento dos trabalhos arqueológicos”? Para além da mera constatação da sua existência. É que nesta responsabilidade estão incluídas sobretudo questões que não são de natureza imediatamente técnica e relacionada com a execução dos trabalhos de Arqueologia… A menos que se institua de Direito a figura do coordenador científico e se confira a estas “instituições” a responsabilidade de uma efectiva “direcção científica”. Solução que eu apoiaria indefectivelmente!

3.2
Mais uma vez, um problema a resolver sobretudo em sede de credenciação dos arqueólogos e de acreditação das instituições. A estas, é preciso impor um conjunto de critérios exigentes relativos a: estrutura de decisão, meios materiais e equipamento, capacidade financeira, direcção científica e actividade de publicação. São critérios muito claros e facilmente quantificáveis.

3.3
Integralmente de acordo, o problema tem que ser revisto, na medida em que texto actual é de aplicação prática impossível. Desconheço a solução!

4
Outro dos pontos fulcrais das alterações necessárias ao actual RTA.
Com efeito, curiosamente, o “Regulamento dos trabalhos arqueológicos” é omisso em relação a quase tudo o que efectivamente regulamente a execução desses trabalhos. A única fase do trabalho de Arqueologia que aqui mereceu atenção consiste na execução dos relatórios.
Porém, no texto actual surgem conceitos indefinidos e, pior ainda, misturados: as referências indistintas ao “relatório” ou específicas ora ao “relatório de progresso”, ora ao “relatório final” criam uma situação de completa confusão acerca da intenção do legislador. Em consequência, se se pode aceitar a redacção do artº 12º, já a norma do artigo 13º será necessariamente a rever profundamente e desdobrar em dois pontos distintos: no artº anterior não se refere um, mas sim dois tipos de relatórios: “de progresso” e “final” e ambos devem aqui merecer tipificação e definição de conteúdos separadamente. Aliás, a situação actual é bastante ridícula: a única interpretação admitida pela redacção actual é a de que o relatório de progresso é em tudo idêntico ao relatório final acrescido de um programa ulterior de trabalhos. Ora, nem isso é prática corrente, nem, de resto, faria qualquer sentido.

Para além disto, importa dizer, como muito bem salienta o documento da APA, que esta normalização de procedimentos e conteúdos que neste artº 13º se tentou (e se deve aprofundar) a respeito dos relatórios das intervenções reveste a forma da imposição de um esforço que tem que alargar-se aos demais campos da actividade técnica do arqueólogo. A determinação de requisitos mínimos a respeito dos procedimentos de campo, nomeadamente (mas não só) de registo, de laboratório e de inventário, deve constituir um objectivo fundamental do RTA. Tenho, contudo, consciência da dificuldade (e dos perigos!) da tarefa. Há algumas experiências europeias a considerar, por exemplo em Itália.

Por fim, em termos de forma do pedido, há no texto actual algumas incongruências e sobreposições entre o requerimento e os documentos anexos solicitados. Mas estas são questões de simples solução.

5
Por fim, a fiscalização. Aqui, quero salientar dois pontos distintos: as questões de fiscalização propriamente dita e as questões relativas às sanções (aos arqueólogos) em caso de prevaricação.
Quanto à fiscalização, devem ser definidos objectivos mínimos, critérios e procedimentos. Porém, a tarefa afigura-se-me assaz complicada num momento em que a opção política consiste precisamente em desmantelar os mecanismos de fiscalização. A relação com as estruturas autárquicas surge cada vez mais inelutável. Esta solução — a que já não escaparemos! — deve ser tratada com extrema precaução: se ela pode trazer a médio/longo prazo benefícios significativos, os riscos que encerra no imediato são enormes e assustadores, quando considerada a assimetria da escala de prioridades e preocupações dos trezentos e picos municípios portugueses.
Esta fiscalização, seja qual for o seu suporte institucional, deve incluir um controle rigoroso das actividades económicas com impacto no registo arqueográfico nacional, mas também incluir a própria fiscalização EFECTIVA da actividade dos arqueólogos. Será decisivo garantir mecanismos de sanção adequados, justos, mas também eficazes e implacáveis na penalização dos infractores. Mecanismos e procedimentos de fiscalização que, na senda do que venho defendendo neste texto, devem tratar de forma específica os responsáveis técnicos pela execução dos trabalhos de Arqueologia e as instituições que sustentam essas intervenções. Também aqui não há nada para inventar: multas e suspensões temporárias da actividade.


Considerandos supra-numerários
Para além das questões tratadas pelo documento da APA, outras me causam hoje preocupação considerável na leitura do texto actual do RTA. Refiro Algumas destas.

a.
É a discutir a permanência da referência ao PNTA em sede de RTA. Para além do mais, por princípio, a investigação em Arqueologia tenderá a ser financiada em sede de FCT, pese embora isso possa doer muito à comunidade (pseudo-)científica dos arqueólogos portugueses.

b.
Preocupa-me bastante a questão, muito mal resolvida pelo texto actual da caducidade anual da autorização. A fórmula anterior (as autorizações “são válidas no ano civil para que são concedidas”) resulta no tratamento diverso dos pedidos de autorização segundo a data em que são apresentados. No limite, uma autorização de 2 de Janeiro é válida por 12 meses e uma de 30 de Dezembro por um dia, situação claramente iníqua.
Trata-se aqui de proteger o direito da tutela à informação — indispensável para a gestão do património arqueológico nacional, mas importa também evitar a interrupção de intervenções em curso por motivos exclusivamente burocráticos. Tal nem seria muito difícil, basta substituir um prazo aleatório “ano civil”, por um prazo de “12 meses”. Com uma redacção do género:
As autorizações a que se refere o número anterior são válidas por um período de 12 meses.
Em todos os casos de intervenções de Arqueologia que se prolonguem por um período superior a 12 meses, a renovação da autorização dependerá da apresentação e aprovação de um Relatório intercalar do progresso da intervenção durante o período em questão.
Os relatórios intercalares referidos no número anterior podem ser entregues ao Igespar, IP. a partir de 15 dias antes da caducidade da autorização em curso.
c.
Não me parece bem resolvida a questão dos prazos de entrega de relatórios e publicações.
Desde logo, incomoda-me um pouco que se ponham todas as situações no mesmo plano e é sabido de todos que se fazem muitas intervenções que se revelam difíceis de publicar… por escassez de dados do próprio registo arqueográfico. Estas situações deveriam ser previstas.
A distinção feita entre contextos urbanos e não-urbanos, por outro lado, parece-me excessivamente simplista e desfasada da realidade arqueológica.

d.
Por fim, penso ser muito importante resolver de forma muito clara a questão da publicidade dos relatórios.
No entanto, a este respeito, sou profundamente contrário à manutenção da possibilidade de aceitação dos relatórios como publicação ou, em sentido inverso e como também já vi, das publicações como relatórios. Estas possibilidades deveriam ser liminarmente eliminadas do RTA: um relatório e uma publicação científica são documentos estruturalmente distintos, com conteúdo e objectivos bem diferentes. Um não pode substituir o outro.



Miguel Almeida
(Dryas Arqueologia)