2008-02-21

Muito barulho por nada?...

Os arqueólogos fazem muito barulho. Somos poucos, mas quando queremos somos capazes de armar um bom estardalhaço.


Foi com estardalhaço, recorde-se, que se conseguiu fazer recuar um brutal investimento público nacional para salvaguardar um brutal património cultural da Humanidade. De tanto barulho fazermos até já somos ouvidos no meio da construção e obras públicas, tradicionalmente hostil à arqueologia e aos arqueólogos. Num seminário sobre o Novo Código dos Contratos Públicos (CCP) ouvi repetidamente ser invocado como motivo de suspensão lícita de trabalhos a “ocorrência de achados arqueológicos”. E, se sublinho a expressão, é porque me parece significativo que, numa assembleia de engenheiros e juristas (a carta fora do baralho era eu e duvido que alguém suspeitasse a minha condição profissional), ninguém questionava a razoabilidade de suspender trabalhos por esse motivo, sendo até usado como exemplo óbvio para ilustrar o enquadramento desse procedimento no âmbito do CCP.

Também o barulho que fazemos motiva comentários como os que ouvi recentemente a propósito da chamada crise dos avençados do IGESPAR: “Ah, mas os arqueólogos são muito interventivos, muito unidos”. Somos muito interventivos e muito unidos fora das situações de crise? Sem ser quando toca a rebate para salvar o património do afogamento ou o que resta de uma experiência institucional muito positiva mas sucessivamente esfrangalhada por fusões e confusões? Quantos de nós, fora dos momentos de crise, participam activamente nas discussões públicas de documentos e instrumentos que podem interferir com o património arqueológico e com o exercício da profissão? Quantos de nós, fora dos momentos de crise, tem uma intervenção civicamente responsável na defesa dos direitos pelo exercício digno da profissão? Quanto de nós, quotidianamente, exercem a sua actividade com os mais elevados padrões de qualidade e no respeito dos princípios éticos e deontológicos da profissão?

Eu quero acreditar que somos muitos. E, como muitos que somos, temos é mais que ser interventivos e unidos para saber bem o que queremos fazer com o espaço que ganhámos, justamente e com estardalhaço, na sociedade portuguesa.

Este ciclo de debates, com o feliz título “Arqueologia em Revista”, pode efectivamente ser a oportunidade de mostrarmos, perante nós próprios para podermos ser coerentes perante os outros, que todo este barulho não tem sido... por (e para) nada.

3 comentários:

Anónimo disse...

Maria José,

Não podia deixar de lhe dar um abraço de boas vindas à blogosfera!

Votos de sucesso para o blogue!

Anónimo disse...

É salutar encetar esta empreitada: com muitas vozes ou com meia dúzia de nós!... Na verdade, ficar quieto, é bem pior! E, na verdade, nem percebo porque é que não percebemos que temos que nos perceber (entender)! Ou podemos continuar assim… um por si e todos por nenhum. Depois, nas alturas de crise, onde chegamos num estado mísero (porque durante o senda nada se fez), lembramo-nos (mesmo assim só alguns): ah e tal… temos que nos ajuntar para ver se não nos tragam… Mas que ajuntamento poderá ser este?! E a sociedade: olha, olha… lá estão os arqueólogos outra vez! Coitados, também andaram tantos anos a estudar para isto…

Alexandre disse...

“Foi com estardalhaço, recorde-se, que se conseguiu fazer recuar um brutal investimento público nacional para salvaguardar um brutal património cultural da Humanidade.”


Se falamos de Foz Côa, não sabe até que ponto tal “estardalhaço” não terá sido um presente envenenado.


Por um lado, nunca vi estudo algum (pode ser falha minha) que indicasse, preto no branco, que a submersão afectaria irreversivelmente as gravuras ou haveriam movimentações de terrenos, com consequente destruição dos sítios rupestres? Até porque a bibliografia existe, acessível – este estudo, rigoroso, exaustivo e completo indica até que certas categorias de artefactos beneficiam com a sua submersão: “The Final Report of the National Reservoir Inundation Study, Volumes 1 and 2, by Daniel J. Lenihan, Project Director, Toni L. Carrell, Stephen Fosberg, Larry Murphy, Sandra L. Rayl, John A. Ware, 1981, United States Department of the Interior, National Park Service, Southwest Cultural Resources Center, Sante Fe, New México.


Ou seja, não havendo esse estudo, a decisão de parar com a construção da barragem terá sido baseada em opiniões subjectivas, o que menoriza a arqueologia enquanto ciência.

Essa subjectividade, esse colorido soixante-huitard em que, de repente, surgiu como mais um pretexto para a efectivação de uma fractura política por quase todos mais que mitificada e desejada, levou a que a questão de Foz Côa transitasse da esfera da política cultural para a esfera da política partidária. Normal é assim que, qual efeito boomerang, o marasmo em que vive actualmente Foz Côa (à parte o muito e bom trabalho científico que por lá se tem feito e que só ocorre porque, à semelhança das gravuras, também a maioria dos arqueólogos não sabe mergulhar mas que, como todo o bom trabalho científico só interessa realmente a 0,2% da população mundial) tenha-se voltado, não só contra o partido agora no Poder e que então içou essa bandeira, como também contra todos os putativos técnicos e cientistas que, esquecendo que deveriam assumir uma postura técnico-científica e não folclórico-histriónica, agora vêem ser-lhes assacadas responsabilidades pelo deserto que Foz Côa continua a ser (e que seria, mesmo com a barragem construída, à cota máxima).

Muitas destas criticas são justas. Eu próprio visitei, intencionalmente, Foz Côa 3 (três) vezes, em épocas e anos diferentes para tentar visitar os sítios, mas ou não havia guia, porque estava de férias, ou o jipe estava avariado, ou fosse lá o que fosse, uma prática recorrente nas (poucas) estações arqueológicas ainda abertas ao público em geral. Assim, é difícil por do nosso lado a opinião popular, tanto mais agora que, com a teoria alarmista do aquecimento global e das secas moderadas a fortes que nos começam a assolar, mais difícil se torna contrapor o exemplo de Foz Côa às opiniões daqueles que querem – e bem, no meu entender – aumentar a nossa capacidade de retenção hídrica e a nossa autonomização energética em relação ao petróleo.

Deveríamos todos aprender com Foz Côa, justificando técnica e cientificamente os nossos estudos e as nossas conclusões, deixando ao Poder, por mais que nos custe, o ónus de assumir a responsabilidade por qualquer atentado ao património (se assim acontecer, deveremos, sem histerismos, usar a lei nacional, europeia e internacional para punir, nos lugares devidos e com argumentos válidos, os responsáveis políticos - pode não funcionar a principio mas, a longo prazo, creio que será esta a aproximação mais correcta).