2008-02-22

A Arqueologia portuguesa no divã

Periodicamente, o meio arqueológico nacional agita-se, preocupa-se, fala de crise… Depois, esquece-se, acomoda-se e aquieta-se, até à próxima “crise”.
Lembram-se?
Foi assim no momento em que explodiu o tema da Arte do Côa, seguramente, o mais interessante e fascinante sobressalto cívico-arqueológico português – foi nos fins da 1994, já lá vão catorze anos, que a coisa saltou para os jornais.
Crise, crise, como é possível???... Como pôde tal coisa acontecer, estarmos em vias de ficar sem o gigantesco vale sagrado com as suas manifestações de arte parietal?
No (ainda) incipiente meio arqueológico nacional – não cabíamos todos num táxi, mas quase – tomava corpo uma nova geração de estudantes de Arqueologia, que teve um papel importantíssimo no processo do Côa. Um processo que foi, ele próprio, um caso de estudo de participação cívica em Portugal – a quem não conhecer, recomenda-se a leitura do livro coordenado por Maria Eduarda Gonçalves, O Caso de Foz Côa: Um Laboratório de Análise Sociopolítica. Lisboa: Edições 70, 2001. Um processo em que a acção persistente e continuada dos arqueólogos, gozando também, diga-se, de uma conjuntura política altamente favorável (o fim de ciclo do chamado cavaquismo, com tudo o que tal implicou), demonstrou a eficácia do protesto sólido, coerente, bem fundamentado e com objectivos claros e bem definidos.
Dois anos depois, em 1996, nascia o IPA, tal como o conhecemos – a este respeito é interessante reler a entrevista dada por João Zilhão, nas páginas do Al-madan, II série, 6, 1997, p. 78-98, acompanhada de comentários vários. E veio o Parque Arqueológico do Vale do Côa (primeiro e único no género, no nosso país), veio a ratificação pelo Parlamento Português da chamada “Convenção de Malta” (com o consequente aumento exponencial da actividade arqueológica de contrato), veio o Instituto Português de Arqueologia, veio a criação da Revista Portuguesa de Arqueologia e o crescimento da série monográfica Trabalhos de Arqueologia (ambas referências fundamentais da afirmação pública da actividade arqueológica), veio o grande programa de minimização de impactes do regolfo da barragem de Alqueva. Em suma, uma época de grande excitação e entusiasmo, actividade febril e grande optimismo, onde a geração dos estudantes que se manifestaram no Côa encontrou o espaço para crescer e se consolidar enquanto verdadeira comunidade profissional, tanto no sector público, como no privado.
Depois veio a crise, não a da Arqueologia, mas a do país. O engordar do défice e o emagrecer do PIB. A instabilidade política.
Depois, nova crise. Falou-se em fusão, em retrocesso ao velho modelo IPPAR – recorde-se, porque nunca será demais dizê-lo, o modelo que possibilitou a quase destruição do património do Côa. Nova agitação e pública indignação contra o Ministro da Cultura.
E a coisa ficou assim.
Depois, voltas e mais voltas, e voltou ao poder o partido que tinha salvo a Arte do Côa e que tinha apresentado o melhor Ministro da Cultura que até hoje existiu em Portugal, embora a má notícia (que sempre acompanha a boa) fosse que o dito ministro não voltaria à ribalta, pelo menos, à da Cultura, nem a sua linha doutrinária vingara no partido a que pertencia.
No domínio do Ensino, nasceu um novo modelo de formação, marcado por um paradigma diferente, o chamado de “Bolonha”. Implicou um redesenho geral dos três ciclos de Ensino Superior em Arqueologia - licenciatura / mestrado / doutoramento, de imensas potencialidades – e a consolidação da noção de que o processo formativo não se esgota neles, antes se afirmando como um processo contínuo, dito de formação ao longo da vida. Começa assim a desenhar-se a possibilidade de fazer crescer a “massa crítica” de arqueólogos com níveis avançados de formação, abrem-se mil possibilidades de concepção e desenho de acções, destinadas a profissionais já formados e em pleno exercício.
Ah!... É verdade. Afinal, o que fora ameaça em tempos passados, consumou-se no presente. Os organismos IPA / IPPAR fundiram-se e, agora já se sabe, afirmado e confirmado, a Biblioteca do IPA encerrará por tempo indeterminado, à espera de novo poiso. As consequências destes e de outros eventos não são necessariamente catastróficas, sequer dramáticas, mas são, seguramente, preocupantes. Não sabemos qual será a capacidade de afirmação e manobra dos responsáveis pela Arqueologia nacional, neste novo quadro institucional; não sabemos por quanto tempo permanecerá inacessível a melhor biblioteca especializada que temos.
Novo sobressalto. De novo a crise, a crise…
E a coisa ficou assim?
Com a devida vénia ao Zeca Afonso, diria que a indignação do arqueólogo é como o amor do estudante… Não dura mais que uma hora.
Por isso, saúda-se a iniciativa de Al-madan de criar esta Arqueologia em Revista – já agora, uma revista (Al-madan) que ao longo destes anos se tem afirmado como um espaço fundamental de notícia, balanço, encontro e debate, podendo rastrear-se nas suas páginas boa parte dos temas aqui aflorados. Pode ser (se assim o quisermos) um confortável fórum de reflexão e debate, com um fôlego e alcance que se não esgote na tradicional pirotecnia de arraial, que tem iluminado os céus em cada nova crise.
Pode ser também o lugar onde finalmente, deitados no divã, com luz velada e quase só entre nós (e o resto do mundo) nos perguntemos porque razão ainda não há um Museu em Foz Côa?... Porque razão ainda não viram a luz do dia as monografias das intervenções no regolfo da barragem de Alqueva?... Porque razão a “classe” dos arqueólogos não se consegue auto-regular, estabelecendo entre si padrões de qualidade mínimos para as intervenções de arqueologia de contrato?... Porque razão a “classe” dos arqueólogos não se consegue auto-regular, garantindo patamares dignos de remuneração aos seus técnicos?... Porque razão a “classe” dos arqueólogos não se consegue auto-regular, denunciando vigorosamente as intervenções desonestas e de inaceitável qualidade?... Porque razão não se consolida o princípio da publicação regular dos resultados das escavações (seja por que meio ou em que suporte)?
Enfim, que este espaço seja a tradicional praça do protesto indignado e de clamor contra a incúria dos outros, mas que seja também o nicho de introspecção dos arqueólogos.

3 comentários:

história e arte disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Anónimo disse...

Depois da Convenção de Malta só falta mesmo a da malta!...
Façam-na! Assumam-na!

João disse...

Divagamos...É verdade.

Apontamos, indignamos, gritamos, mas, e no fundo, divagamos.

A divagar, e devagar, lá vamos dizendo verdades inconvenientes e/mas inconsequentes.

Confesso que por feitio, até defeito, não confio na expressão "é preciso" (embora já a tenha usado). Não confio na palavra "urgente".

Antes prefiro, e aqui está talvez o defeito, praticar o esforço gerúndio "fazendo".

Se todos pensarem assim, e se fizerem todos um esforço, talvez se ultrapasse a rixa, se passe da queixa, e se chegue ao fecho.

Pelo menos, e até melhor solução, que se vá tentando...

Mas de pé!