2008-02-28

Do tempo dos heróis à vida de avestruz, sem passar pela dura realidade

Pensara resumir por esta altura algumas ideias fundamentais para a discussão que a Al-Madan nos propõe enquanto comunidade.
Tenho agora de facto sob os olhos uma folha muito branca cheia de gatafunhos e setas em todas as direcções, mas, a natureza intrinsecamente dialógica deste suporte não se compadece; aconselha mais depressa que acompanhe a dinâmica das intervenções precedentes.

Estaremos provavelmente quase todos de acordo em considerar genericamente como “crítico” o momento actual — nem nisto há nada de muito novo, no quadro da Arqueologia errante de um país em perpétua crise.
A dificuldade não estará no diagnóstico do estado da nossa arte: de tão evidentes que são os problemas, este(s) diagnóstico(s) pode(m) agora resumir-se ao relato de pares aparentemente infindos de casos reais com que todos chocamos quotidianamente mais ou menos de frente e cuja multiplicação por essa Arqueologia fora vai transformando o que antes apenas era suspeição de desgraça numa evidência de dimensões paquidérmicas.
Não insisto.

Pelo contrário, perturba-me sempre um certo timbre muito tipicamente nosso, como que a meio caminho entre o partizanismo e a nostalgia de um tempo que… nunca foi.
Trata-se de uma perspectiva com tanto de boas intenções (ou emoções), como de consequências nefastas.

Obviamente, esta perspectiva resulta (1) da vontade de reagir a uma situação considerada negativa (2) num quadro geral de incapacidade de acção resultante de um deficit de estruturação do sector que ultrapassa em muito a dimensão das questões que agora são objecto de críticas e investidas do momento.

Porque digo que os problemas actuais são maiores do que as queixas que fazemos?
Porque são estruturais. Desde logo, porque consistem antes de tudo no estado presente de uma classe profissional (/técnica, /científica, o que se queira!) cuja qualificação técnica é muito díspar e, sobretudo, é em média profundamente insuficiente.
Depois, porque a classe desqualificada que somos produziu um ambiente inconsistente, instável, onde erram entidades — públicas, privadas e individuais — cuja trajectória não é sempre coerente (de um ponto de vista técnico), e nem sequer é muitas vezes inteligível pelos outros actores do drama.

E qual é o impacto desta situação estrutural nas queixas que estamos a fazer (dir-se-ia: que fazemos repetidamente de cada vez que se torna um pouco mais óbvia uma destas “crises” repetidas que, afinal, são sempre a mesma)?
Bom, provoca a falta de um referencial que nos permita transformar a vontade de agir em actos consequentes, à boa e velha maneira — Reflexão… Acção! —, que é o que urgiria fazer.
O que sobra? O espírito de luta e de missão?
Mas… Seremos ainda valorosos evangelizadores?
Esse papel social interessa à Arqueologia.pt de 2008?

Penso que não: não só a imagem me surge um pouco anacrónica — relembre-se, “já não há ideologias” —, como nem sequer penso que esta imagem de envolvimento pessoal com a causa represente uma mais-valia na sociedade actual, dialéctica, onde, pelo contrário, a “missão” pode ser mesmo um obstáculo à comunicação.
Não me vejo com veia de pregador e, por mais que inevitavelmente me ferva o sangue, não me proponho a lutas. Não por indisposição natural, mas porque essa não é a solução para o problema actual, que requer mais trabalho laborioso do que acções valorosas. Mostra o passado que por detrás dessas lutas escondemos frequentemente uma maneira muito própria de fazer de avestruz: permite-nos manter em alta os índices de auto-confiança do grupo (auto-proclamado defensor do património), até passar a borrasca maior, sem atacar os verdadeiros problemas. Os tais, estruturais, da qualificação técnica e ética, dos objectivos e da organização fundamental da actividade.
É nestes problemas que reside a dura realidade. São estes que exigem o nosso trabalho laborioso, sem o qual não conseguiremos pôr-nos de acordo em relação a qual dos “tempos que nunca foram” deveríamos voltar. Eis!

3 comentários:

Anónimo disse...

Bem, aproveitando a boleia, e concordando com as palavras desassombradas do MA, gostaria de (re)-introduzir uma proposta que tem sido apontada por alguns, mas, segundo creio e sem perceber bem porquê, rejeitada pela maioria: a criação da Ordem. Não tenho uma opinião já completamente formada sobre isto. Contudo penso que seria bom discutir essa opção.
Talvez fosse uma boa forma de começar a atacar estes "problemas estruturais".

António Batarda

Anónimo disse...

...estruturais e transversais...

Anónimo disse...

Não tenho a certeza da maioria rejeitar a Ordem... Aliás, nunca se fez nenhum inquérito que nos permita quantificar minimamente quantos são a favor, quantos são contra e a quantos não lhes importa a questão. Estes seriam, com certeza e infelizmente, a vasta maioria, tal como é vasta a maioria de portugueses para quem as grandes discussões de fundo são um aborrecimento...

Mas sejamos realistas: a Ordem não é a panaceia que muitos julgam, a superestrutura que iria resolver de uma assentada todos os problemas que afligem a arqueologia nacional. Quando muito, poderia contribuir para solucionar algumas das questões mais específicas do foro profissional (cumprimento das regras deontológicas básicas, tabelas mínimas de prestação de serviços, condições contratuais, etc.), mas esperar que este tipo de estrutura corporativa possa determinar, ou mesmo influenciar decisivamente as orientações concretas das políticas da Cultura e do Património no nosso país é esperar demasiado.

As discussões em torno da Ordem terão o seu devido enquadramento nos debates que se aproximam, o enquadramento próprio de um tema que diz essencialmente respeito à organização da classe e à sua auto-regulação (se é que existe esta classe e se ela se quer auto-regular).

Há ainda muito trabalho a realizar antes de avançar em definitivo para a Ordem, começando pela necessária construção de uma consciência de classe. Nós não somos nem melhores nem piores que os demais profissionais, somos simplesmente diferentes e é nessa diferença que radica a nossa mais-valia. Penso que a especificidade da nossa profissão é suficiente para justificar a auto-regulação, mas apenas depois de nos livrarmos de alguns vícios e vaidades que nos enfermam e contribuem para uma percentagem da má imagem que temos junto dos restantes agentes sociais.

Como disse o Miguel, e estando totalmente de acordo com ele, devemos começar por resolver os tais problemas estruturais, sobretudo os que dependem da formação básica, não exclusivamente técnica e científica, mas, talvez com tanta ou mais importância que as anteriores, os da formação como indivíduos integrados numa sociedade.