2008-03-11

O papel do Estado e a Arqueologia

O Luis Raposo, em recente contributo inserido neste Blogue, fez alguns comentários sobre a Arqueologia e o papel do Estado (mais concretamente do Ministério da Cultura) que, me pareceram algo redutores e que merecem por isso algum contraponto, esperando assim provocar outros contributos ou comentários. Com efeito, partindo da verificação do inegável desenvolvimento da chamada “Arqueologia de Contrato” (estimulado pelos elucidativos gráficos da Jacinta Bugalhão reproduzidos neste mesmo Blogue) o Luis Raposo conclui:
“De resto, o maior êxito do IPA, na minha avaliação, está precisamente em ter facilitado que se tivesse desenvolvido um quadro profissional e social da arqueologia que o transcende e tem condições de continuar a existir, mesmo sem IPA ou até mesmo sem grande peso da arqueologia dentro do Ministério da Cultura em geral (podendo até conceber-se o dia em que as funções de fiscalização de impactes ambientais em arqueologia possam ser garantidas por organismos na área do Ambiente). Retomo aqui uma velha afirmação minha: quanto mais a arqueologia (como ciência e como actividade profissional) se libertar da Cultura, melhor.”

Não quero nem seria capaz de entrar na análise concreta e objectiva da situação do “quadro profissional e social da arqueologia” que hoje se faz em Portugal, análise que merecia já um estudo feito por profissionais externos à própria actividade (sociólogos? economistas?). No entanto, em resultado da minha experiência mais recente de contacto com esta realidade, parece-me que o tal “desenvolvimento” só com muito boa vontade se poderá considerar “consolidado” e que a “Arqueologia”, nomeadamente a “preventiva”, passado o efeito catalizador do “Côa”, está muito longe de representar uma necessidade social e cultural, claramente assumida pela comunidade. Mas esse tema (Arqueologia e Sociedade…) fica para outra ocasião. Hoje, ainda que de forma esquemática, gostaria de reflectir sobre as “funções mínimas” do Estado (aos seus diferentes níveis) para cumprimento das suas obrigações de salvaguarda do “património arqueológico”, enquanto recurso material “difuso”, finito e não renovável, mas essencial para a construção de um conhecimento que é condição “sine qua non” da nossa existência enquanto seres sociais... Isto, partindo do pressuposto constitucional de que a salvaguarda do património é (ainda) uma responsabilidade colectiva a assumir pelo Estado.

0. Funções legislativas_ desde logo, a função básica e que, exige que o Estado disponha de um mínimo de assessoria especializada, ainda que dispersa por diferentes organismos, capaz de informar os políticos nesta matéria essencial. E atenção: se os instrumentos de enquadramento geral existem, por vezes por força dos regulamentos comunitários, nomeadamente no que respeita à “minimização de impactes”, “planeamento territorial” e “serventias administrativas”, já ao nível da respectiva regulamentação, mesmo da mais elementar, muito há ainda a fazer. Num contexto de funcionamento normal da justiça, sou obrigado a admitir que boa parte da actividade que alimenta a “arqueologia de contrato” teria alguma dificuldade em resistir a uma eventual contestação dos promotores...

1. Arqueologia Preventiva_ é neste sector, envolvendo a “avaliação de impactes”, o licenciamento nas “servidões patrimoniais”, e o planeamento e ordenamento do território, que se concentra hoje a esmagadora maioria da “arqueologia de contrato”. A existência de uma “tutela” do Estado não decorre apenas da necessidade da “regulação” e “fiscalização” duma actividade especializada que é feita quase exclusivamente por “privados” que concorrem entre si, mesmo quando estão em causa obras ou projectos promovidos pelo próprio Estado. Num domínio carregado de “surpresas” (a descoberta faz parte da definição da própria Arqueologia) e amplas “subjectividades”, é ao “Estado” através de “pareceres técnicos vinculativos” que compete determinar, caso a caso (e não casuisticamente…), o âmbito das condicionantes preventivas ou minimizadoras a serem consideradas. Mas, obviamente, a “arqueologia preventiva” não é um fim em si e há que justificar socialmente os custos assumidos pelos particulares. A manutenção de “bases de dados territoriais”, o enriquecimento de “arquivos documentais” e de “reservas arqueológicas” acessíveis à investigação acaba por ser o “produto” material da actividade arqueológica de rotina já que as grandes descobertas, envolvendo níveis de decisão excepcionais, vão sendo raras. Ora, compete ao Estado, embora podendo partilhar essa missão com terceiros, a par da regulação, do licenciamento e fiscalização da actividade, promover e manter esses instrumentos técnico-científicos, estejam eles na dependência do Ministério da Cultura ou nos do Ambiente ou Território, como acontece nalguns países...

2. A investigação_ Acontece que as obrigações do Estado não podem terminar na imposição a “terceiros” de condicionantes arqueológicas (o tal princípio do “poluidor-pagador”). Compete ao Estado, eventualmente através dos organismos de gestão do Ensino Superior e da Investigação, mas também através do Ministério da Cultura, promover a formação e a investigação nestas áreas, ainda que essa promoção ou apoio, possa tomar formas ou recorrer a instrumentos diversos. Sem um mínimo de investimento público em “investigação arqueológica” é absolutamente contraditório se não mesmo injusto e falacioso, impor “condicionantes arqueológicas” aos privados. Na esmagadora maioria dos casos, a informação resultante da “arqueologia preventiva”, só faz sentido e é útil socialmente, se disponibilizada e reprocessada no âmbito de “projectos de investigação”, académicos ou outros. E, como se sabe, apenas excepcionalmente se consegue dos promotores um comprometimento que vá além da mera remoção dos impedimentos ou obstáculos que prejudicam o prosseguimento da obra…
3. A valorização_ Entendendo, neste caso, a “valorização” como a gestão (conservação e musealização) dos bens arqueológicos móveis e imóveis, com vista à sua fruição cultural pelo público, será possível que esta se reduza a uma lógica meramente mercantilista que resolva os problemas decorrentes de uma “Administração Pública” hoje demonizada enquanto gestora? Isto é, ao conceito do “poluidor-pagador”, contrapor-se-ia o do “consumidor-pagador” e, nesse caso, nada como uma gestão privada para combater o desperdício e fazer gerar receitas? Ora, apesar dos graves problemas de financiamento, não parece que (por enquanto) se ponha em causa a existência dos Museus Nacionais, ainda que seja possível questionar o respectivo “mapa”… Por outro lado, a Administração Local, continua a apostar, nem sempre de forma racional, nos Museus Municipais ou Locais. Já no que respeita aos sítios e monumentos, a situação parece diferente. Apesar da forte aposta do exIPPAR na “musealização” de sítios e monumentos, não é clara a posição da actual Administração da Cultura relativamente aos gravíssimos problemas de gestão que aqueles apresentam, estando muitos encerrados ao público. Haverá lugar para a “gestão pública” desses monumentos? Ainda que não me repugnasse um modelo de gestão privada por concessão, já sugerido como uma área de negócio possível para as “empresas de arqueologia”, há que ser realista e cauteloso na perspectivação de um tal modelo. Raros seriam os sítios arqueológicos que, no cômputo dos custos de exploração (incluindo obrigatoriamente a respectiva conservação) com as receitas poderiam autofinanciar-se. Com efeito, independentemente do modelo de gestão dos sítios e dos monumentos arqueológicos (públicos), está em causa saber se o Estado se deve responsabilizar pelos custos que a sua conservação implica, sabendo que por mais eficaz que seja a sua “exploração” esta tem condicionantes que impedirão em qualquer caso o respectivo equilíbrio financeiro. Ainda que a resposta pareça evidente, alguns indícios recentes parecem apontar em sentido inverso. Por exemplo, a não listagem nos sítios e monumentos a afectar à Direcção Regional de Cultura do Alentejo, de estações arqueológicas (propriedade do Estado), como a Gruta do Escoural, o Monte da Tumba, Torre de Palma, Mesa dos Castelinhos, Castro da Cola, etc…, terá sido apenas um lapso?

Estabelecido aquilo que considero o quadro mínimo das obrigações ou funções do Estado relativamente ao Património Arqueológico, importa avaliar se o “modelo” ou a “estrutura” funcional decorrente da recente reestruturação dos serviços do Ministério da Cultura, conseguirá responder a essas necessidades mínimas. Mas, esse assunto pode ficar para depois…

1 comentário:

Anónimo disse...

Façam textos mais curtos