2008-06-20

Credenciação para a investigação

O acesso à direcção de projectos de investigação tem sido feita, em Portugal, com base no grau de licenciatura. Esta situação compreende-se, na medida em que as últimas décadas corresponderam ao período em que se procedeu à afirmação e individualização da disciplina no meio académico e na própria estrutura administrativa do país. Será bom recordar que os primeiros doutoramentos em Arqueologia datam da primeira metade do anos oitenta e que só muito recentemente os corpos docentes de Arqueologia são maioritariamente (nalguns casos já exclusivamente) compostos por doutorados. É, assim, natural que o percurso em investigação se iniciasse com a licenciatura, como foi, aliás, o meu caso no já longínquo ano de 1986.
Mas a situação actual já é outra. Entretanto surgiram os mestrados. Mais recentemente os primeiros doutorados fora da carreira académica. Por último a reforma de Bolonha, que estabelece a formação contínua em três ciclos, sendo o último o correspondente ao doutoramento.
Assim, e daqui para a frente (e naturalmente sem aplicações retroactivas), o que será normal é que, de acordo com o que se passa no resto do mundo “civilizado” e, por exemplo, de acordo com os critérios da própria Fundação para a Ciência e Tecnologia, para a direcção de projectos de investigação programada seja exigível o grau de doutor (repito, sem aplicações retroactivas, isto é, quem já dirigiu projectos de investigação e evidenciou competência para tal não deve ser impossibilitado de o voltar a fazer – embora isso se verifique na FCT).
Trata-se de uma questão que entronca na mais vasta problemática da credenciação e que revela que essa problemática não é monolítica, mas que terá que atender a situações diferenciadas. Para a investigação programada parece-me óbvio que, de hoje em diante, quem entrar de novo deveria ter o grau de doutor, como a partir de certa altura foi exigido o grau de licenciado em Arqueologia onde antes bastava o interesse e a dedicação. Não se trata de exclusão, mas do natural aumento do nível de exigência e de qualificação de que tanto se fala. Trata-se de “apanhar os tempos”. Para projectos europeus, muitas vezes nem um notável currículo interessa se não se tiver o grau académico exigido.
Para além disso, seria uma forma de forçar um nivelamento da qualidade por cima (ou, no mínimo , uma estratégia de manutenção) face à “deflação” qualitativa das licenciaturas.

A. Valera

16 comentários:

PF disse...

Estou, por e em princípio, de acordo com as linhas gerais desta opinião. Aliás, é necessária uma completa alteração da "filosofia" que tem presidido à "organização" da investigação em arqueologia neste nosso país. Já não é possível continuar a conceber a investigação num plano essencialmente individual: antes, é necessário reproduzir o que de bom se faz lá fora, o que, neste domínio, representaria a integração de (quase) toda a investigação em estruturas colectivas (centros de investigação reconhecidos e financiados pela FCT).

Estes centros de investigação não têm que ser exclusivamente constituídos por departamentos universitários, pois é possível a concretização de parcerias entre as universidades e as empresas, o que, do meu ponto de vista, tendo em consideração o volume de informação que é manipulado pelo sector empresarial, torna-se um imperativo.

Alexandre disse...

Parece-me bem essa sugestão, como me tinha já parecido aqui há uns posts atrás. Mas logo nessa altura assaltaram-me algumas dúvidas. E primeira é esta: será o doutoramento sinal e certificado de experiência e excelência científica em investigação/escavação? Ou dito por outras palavras, será que ser-se doutorado significa automaticamente que "há um nivelamento da qualidade por cima"? (É que eu conheço doutores em certas áreas que nunca escavaram/publicaram nessa mesma área. Mais, conheço mestres que transitaram directamente da licenciatura para o mestrado (basta ter tempo, dinheiro e alguma paciência) e que não passam de pessoas que cumpriram diligentemente as tarefas que lhe foram confiadas, engoliram alguns sapos, produziram aquilo que o orientador lhes pediu e ficaram mestres de coisa alguma em dois ou três anos).

E quando falamos em "qualidade", falamos do quê?

E quando falamos em doutoramento, falamos de ser-se doutorado em que área ou em que ramo do saber? Arqueologia, exclusivamente? Biologia, quiçá? Antropologia, talvez?

E porquê doutorados apenas para a direcção de projectos de investigação programada? Estamos assim tão mal na "qualidade" daquilo que é feito em termos dessa investigação? (eu pensava que esses projectos são quase que feitos única e exclusivamente no seio da academia, onde a maioria dos académicos serão doutorados.. estarei enganado?)

E, se há projectos de investigação programada isso implica dizer que há também projectos de não investigação e/ ou projectos não programados a médio prazo (penso na arqueologia preventiva, por exemplo)? E esses projectos, quem os poderá dirigir? Os mestres? Os pós-graduados? Os licenciados?

Anónimo disse...

Caramba! Tanta pergunta ao mesmo tempo. Vou começar por responder a uma ou duas e deixo as restantes para depois.

Que garantias confere um grau? Em teoria confere determinadas competências (estão estabelecidas pelas Universidades); na prática sabemos que pode não ser assim com muita gente. Mas isso passa-se com qualquer grau. Hoje, ter o primeiro ciclo do Básico não é garantia de saber ler e escrever.
O que acontece é que para dirigir um projecto de investigação são necessárias determinadas competências e deve haver uma habilitação que supostamente atesta que a pessoa tem essas competências. Se na prática as Universidades permitem que pessoas se licenciem, tenham mestrados e se doutorem sem essas competências, esse é outro problema. Também eu conheço gente que chegará à cátedra e cuja qualidade é muito duvidosa. Mas terá que haver sempre um patamar de habilitação genericamente aceitável. Ora o que digo é que a Licenciatura já não é esse patamar e não o é para muitas coisas. Por exemplo, em muitas Universidades há muito tempo que já não há assistentes estagiários ou sequer assistentes e a entrada na carreira académica se inicia já só com o doutoramento. Da mesma forma que dantes se tirava a carta com a 4ª classe e agora é preciso o 9º ano.

Quanto à investigação programada, é claro que há muita feita fora das carreiras académicas, fora de centros ligados às Universidades ou a Institutos de Investigação. Eu sei que o PNTA está morto, mas não esquecer que os últimos projectos ainda estão a decorrer e muitos não têm sequer qualquer ligação institucional. Depois há uma quantidade enorme de projectos não finaciados pelo estado central que estão em curso. Um exemplo: vá à página do NIA e veja como está a organizar-se a investigação nos Perdigões (sem um tostão do Estado). A própria FCT apoia investigação de parcerias com empresas. A casa do Governador da Torre de Belém é uma parceria da ERA, com o ITN e com a FLUL/UNIARCH financiada pela FCT.
O NIA participa em projectos internacionais GRICES na área da arqueometria.

A investigação em Arqueologia deu um salto qualitativo nas duas últimas décadas. Mas tem ainda aspectos que, fazendo sentido há 20 anos atrás, hoje têm que ser alterados e adequados às novas exigências. E plenamente de acordo com PF: a investigação individual acabou (ou deve acabar). Por isso, o que faz sentido é a integração de jovens licenciados em projectos de investigação alargados, onde possam inclusivamente fazer o mestrado e doutoramento.

Alexandre disse...

"Quanto à investigação programada, é claro que há muita feita fora das carreiras académicas, fora de centros ligados às Universidades ou a Institutos de Investigação."

Eu sei e já me tinha apercebido disso em relação à ERA. O que eu perguntei foi: há (muita/alguma/pouca) investigação programada a ser conduzida neste momento por não doutorados?

A minha impressão é que, se o PNTA está parado, então toda investigação programada a decorrer está a ser coordenada por catedráticos/doutorados (o NARQ da UM com 7 doutorados, o CAM com 9, a UNIARQ com 24... )

O que eu gostava de saber é se há trabalhos arqueológicos da categoria A do RTA que estejam a decorrer, licenciados pela tutela, sob a coordenação de não doutorados..

PF disse...

Penso que já não haverá nenhum PNTA em vigor... Mas haverá certamente PNTA's ainda não encerrados (sem relatórios finais entregues) que são coordenados por não doutorados, constituindo alguns deles uma "plataforma" para a obtenção do grau de doutor dos seus responsáveis científicos.

O princípio da integração da investigação em unidades colectivas vocacionadas para esse efeito não é garantia sine qua non da qualidade do produto conseguido, mas é um caminho que é necessário percorrer porque a alternativa já não é, sequer, uma alternativa. Não quero com isto afirmar que não se possa fazer investigação individual não enquadrada: há determinadas áreas no domínio da arqueologia que podem admitir pequenos projectos que só precisem de um investigador para os levarem a bom termo (o estudo arqueográfico de colecções de materiais arqueológicos, por exemplo). No entanto, mesmo estas áreas deverão ser objecto de uma integração preferencial num sistema institucional.

A qualidade da investigação depende, em grande medida, da existência de estruturas colectivas que possibilitem a troca de informação de uma forma mais fluida e a aprendizagem com as experiências mútuas, ao mesmo tempo que se rentabilizam os recursos materiais e humanos disponíveis. Mas estas estruturas não podem ser um mero somatório de indivíduos e de subprojectos que, no final, se misturarão num só: assim as coisas nunca funcionarão porque, vistas bem as coisas, a investigação continua a ser realizada num plano individual. Infelizmente, há quem ainda não tenha percebido isto (estou a falar de catedráticos e doutorados da nossa praça).

Alexandre disse...

O estudo arqueográfico de colecções de materiais arqueológicos é um bom exemplo.

Mas há mais: não vejo porque é que, por exemplo, acções de prospecção não intrusivas/não destrutivas ou quaisquer outras que não impliquem escavação (logo, destruição) e que não impliquem financiamento público tenham que ser coordenadas por um doutorado. Aliás, tendo em conta o que ainda há para fazer a esse nível, há projectos de carta arqueológica a nível regional que dariam certamente para com que ocupar muitos e muitos doutorandos durante muito tempo.

Anónimo disse...

Alexandre, um inventário não é um projecto de investigação científica. A desvalorização do conceito e do que ele implica tem levado muita gente a designar por investigação científica determinadas tarefas técnicas que podem integrar projectos de investigação científica, mas em si não o são.

PF disse...

Totalmente de acordo com o António: realçaria ainda mais esta confusão com o exemplo, infelizmente cada vez mais estendido, de considerar investigação ou científica toda e qualquer intervenção arqueológica (ou de considerar património todo e qualquer resto arqueológico...).

Anónimo disse...

Meu deus (e eu nem sou crente)......está tudo perdido.

Anónimo disse...

Lá fora tanto o mestrado como o doutoramento são muito mais comuns, dinâmicos, fáceis e prácticos.
Cá ter um doutoramento não é sinal de qualidade apenas de trabalho académico, como academia cá é uma desgraça.
Não se pode pegar no que se faz lá fora e aplicar a uma realidade que passo a chamar de feudal.
Estamos a limitar o acesso ao financiamento a muita gente.
Trabalhar numa equipa é sempre bom (principalmente para conseguir financiamneto), o individualismo é um dos problemas da nossa arqueologia (nem sequer sabemos trabalhar em grupo, geralmente o macho alfa não cede).
Agora à que permitir a investigação aos não académicos (nos quais me integro), com temas especificos ou projectos que não interessam aos grandes senhores (estes já na fase da vida da luz da ribalta).
Temos que trocar o professor pelo cientista e esquecer os títulos.

Anónimo disse...

Meu caro anónimo, não sei onde foi buscar a associação de doutorado a académico.Certamente não ao meu texto. Há muitos doutorados fora da academia. Aliás só pode ser assim, pois não é lógico (nem viável) que a academia absorva todos os doutoramentos que faz. E se estes tendem naturalmente a aumentar é óbvio que é para trabalharem fora do meio académico (embora possa ser em articulação com ele, o académico, assim ele queira e saiba). O doutoramento transformou-se num grau básico e não num grau de excepção.É assim lá fora e terá (será) assim cá. A FCT tem programas de bolsas doutoramento em empresas, cujas candidaturas têm que demonstrar as mais valias desse doutoramento para o trabalho empresarial. Seguramente não é para financiar carreiras académicas. De uma vez por todas é preciso separar a obtenção do grau da ideia de carreira académica. Isso já era. Noutros países já foi há muito tempo. Em Portugal chegou a hora (na Arqueologia, porque noutras áreas há muito que é assim).
Por outro lado, nimguém fala de exclusão de quem tem competências para participar em processos de investigação, apenas de maior exigência para quem dirige e de integração em equipas. E não vale a pena falar contra a aplicação de sistemas externos na inadequada situação portuguesa, porque é precisamente isso que está hoje a acontecer. O nosso palco de actuação em termos de investigação não é a pequenez do território nacional. O futuro da arqueologia portuguesa está também nas redes de relações e de finaciamentos que conseguir estabelecer com o estrangeiro (nomeadamente europeu)

Alexandre disse...

Fico com a dúvida: porque é que a elaboração de uma carta arqueológica é tão taxativamente classificada um projecto não científico?

Porque se eu observar uma dada área, se verificar que nessa área ocorre uma série de fenómenos naturais físico-climatológicos (agitação marítima, turbulência atmosférica, etc.) capazes de influenciar uma série de parâmetros mecânicos (resistência estrutural de cordames de amarração, capacidade de coesão de elementos de ligação aplicados à náutica, etc.) e humanos (intencionalidade de percurso, capacidade de prever evitar e/ou mitigar a acção dos fenómenos naturais, etc.), se avançar com uma hipótese coerente com aquilo que observei e se usar essa hipótese para fazer predições (nestes locais com as características y haverá n naufrágios da época x), se depois testar e confirmar (ou não) essas predições com evidências arqueológicas e/ou documentais de modo consistente de modo a poder formular uma teoria (ou não) capaz de enquadrar quaisquer predições que eu venha a fazer e de explicar quaisquer observações que eu faça, isso é ou não ciência?

Anónimo disse...

Há que separar é a investigação dos graus académicos, muito boa investigação é feita (por esse mundo fora) sem correr atrás do grau académico.
Então tenho que ter um doutoramento para investigar: e até lá?, e financiamento?, e se eu não quiser um doutoramento?, o senhor quando tirou o seu doutoramento (que penso que tem)em que equipa é que estava integrado?
Não se pode aplicar o que se faz lá fora ao nosso sistema feudal, era uma desgraça, lá fora olham é para o CV (ninguém chega a director de escavação sem saber desenhar).
Estrangeiro..concordo...mas é outra conversa.

Miguel Almeida disse...

Alexandre,
O que descreves é... investigação aplicada.
Muito importante e extremamente deficitário em Arqueologia.
Deveria fazer-se muito mais!
Mas não constitui um programa de investigação fundamental.

Alexandre disse...

Ah bom, estava a ver que tinha feito a carta arqueológica subaquática dos Açores na base do empirismo e que teria que deitar fora 6 anos da minha vida e todo o conhecimento acumulado e publicado, juntamente com um parque arqueológico e dois projectos universitários borda fora....


Em todo o caso, Miguel, para isso é que deveriam servir os PNTA's com os seus 4 anos (5 nos Açores) de duração.

Claro que o problema dos PNTA's, neste preciso momento nem é tanto saber se são doutorados ou não os que a ele se candidatam; o problema é o mesmo que aflige as Universidades, que deveriam ser o outro pólo a gerar investigação científica: não há dinheiro (o Público de hoje noticia até que a nossa Universidade de investigação por excelência, a de Aveiro, usa o dinheiro dos diferentes projectos de investigação para andar a pagar o subsídio de férias do pessoal).

E, ou muito me engano, ou se faz um finca-pé com direito a reclamar para os tribunais e para Bruxelas aquilo que o Estado avoca para si como seus direitos e prerrogativas, ou a torneira que ainda pinga algo vai mesmo secar de vez.

Miguel Almeida disse...

É o reverso da medalha da autonomia universitária. Mas só surpreende quem quis assobiar para o ar. Era inelutável!
Se fores ler os antigos textos da Associação Académica de Coimbra, já andávamos a gritar contra isto na primeira metade dos anos 90, numa altura em que se louvava a autonomia como se fosse o caminho da salvação, um pouco como agora se faz com o santo Processo de Bolonha...
Na altura valeu-nos maus tratos de todos os lados, mas já então estávamos certos de que o futuro está sempre contido nos actos que praticamos no presente.