2008-06-20

Credenciação para a investigação

O acesso à direcção de projectos de investigação tem sido feita, em Portugal, com base no grau de licenciatura. Esta situação compreende-se, na medida em que as últimas décadas corresponderam ao período em que se procedeu à afirmação e individualização da disciplina no meio académico e na própria estrutura administrativa do país. Será bom recordar que os primeiros doutoramentos em Arqueologia datam da primeira metade do anos oitenta e que só muito recentemente os corpos docentes de Arqueologia são maioritariamente (nalguns casos já exclusivamente) compostos por doutorados. É, assim, natural que o percurso em investigação se iniciasse com a licenciatura, como foi, aliás, o meu caso no já longínquo ano de 1986.
Mas a situação actual já é outra. Entretanto surgiram os mestrados. Mais recentemente os primeiros doutorados fora da carreira académica. Por último a reforma de Bolonha, que estabelece a formação contínua em três ciclos, sendo o último o correspondente ao doutoramento.
Assim, e daqui para a frente (e naturalmente sem aplicações retroactivas), o que será normal é que, de acordo com o que se passa no resto do mundo “civilizado” e, por exemplo, de acordo com os critérios da própria Fundação para a Ciência e Tecnologia, para a direcção de projectos de investigação programada seja exigível o grau de doutor (repito, sem aplicações retroactivas, isto é, quem já dirigiu projectos de investigação e evidenciou competência para tal não deve ser impossibilitado de o voltar a fazer – embora isso se verifique na FCT).
Trata-se de uma questão que entronca na mais vasta problemática da credenciação e que revela que essa problemática não é monolítica, mas que terá que atender a situações diferenciadas. Para a investigação programada parece-me óbvio que, de hoje em diante, quem entrar de novo deveria ter o grau de doutor, como a partir de certa altura foi exigido o grau de licenciado em Arqueologia onde antes bastava o interesse e a dedicação. Não se trata de exclusão, mas do natural aumento do nível de exigência e de qualificação de que tanto se fala. Trata-se de “apanhar os tempos”. Para projectos europeus, muitas vezes nem um notável currículo interessa se não se tiver o grau académico exigido.
Para além disso, seria uma forma de forçar um nivelamento da qualidade por cima (ou, no mínimo , uma estratégia de manutenção) face à “deflação” qualitativa das licenciaturas.

A. Valera

2008-06-14

Problemas estruturais e conjunturais

Uma actividade profissional é importante, não porque um conjunto de pessoas precisa de trabalhar e ganhar a vida (todos precisamos), mas porque aquilo que produz é socialmente relevante, isto é, é importante para a maioria das pessoas.
É o património arqueológico importante para a maioria das pessoas? A pergunta poderá ser irrelevante, visto que a lei o afirma como importante e, portanto, daí deveria decorrer que o produto da actividade arqueológica seria socialmente valorizado e a profissão de arqueólogo socialmente bem reconhecida (ou seja bem paga, prestigiante, ambicionada, realizadora).
A pergunta só não é irrelevante porque entre a lei e a realidade social há sempre desajustamentos, quando não contradições. Isto porque a lei não é sempre a transcrição normativa de uma prévia vontade social generalizada, mas é frequentemente um instrumento para a mudança das consciências e necessidades sociais gerais a partir de cima.
É isso que ainda ocorre com o Património Arqueológico. Embora a apetência pública por património, e concretamente pelo Arqueológico, seja cada vez maior, de um modo geral a sociedade portuguesa ainda não o valoriza, ainda não se reconhece nele.
Isso foi evidente, por exemplo, na acção de formação que dei nos Açores, para todo o tipo de pessoas que se cruzaram com questões arqueológicas (tutela local, engenheiros, arquitectos, autarcas, grandes promotores, empreiteiros, pequenos proprietários, autoridades marítimas, professores e alunos universitários, arqueólogos). De facto, o peso do custo da minimização arqueológica, com todos os seus procedimentos técnico científicos adequados, é fortemente agravado pela não valorização do que é feito e dos resultados do que é feito.
A consequência, que temos que saber compreender (o que não significa aceitar), é a resistência, a suspeita, a incompreensão, a busca da alternativa (espertalhona, ou não seja à boa maneira portuguesa), a desesperada tentativa de minimização das despesas em algo que não se valoriza, antes se vê como o capricho de alguns e uma forma de esses alguns terem trabalho. Trata-se de uma questão sociológica e histórica, que não pode ser adjectivada ao acaso.
Por outras palavras, uma abordagem de mercado funciona normalmente num sector que é socialmente valorizado, onde o mercado (leia-se a sociedade), pela sua apetência, procura na medida das suas possibilidades a qualidade, é crietrioso e ele próprio fiscalizador. Mas não se passa isso na sociedade portuguesa em relação à Arqueologia, como não se passa em relação a outros produtos culturais ou questões ambientais.
Neste contexto de desvalorização social de algo consagrado na lei como importante, cabe ao Estado (central e local) zelar pela situação desse algo. Mas não só ao Estado, também aos profissionais das profissões que tratam desse algo. Ou seja, têm que trabalhar no sentido de transformar a Arqueologia (o “algo” de que aqui falo) em actividade socialmente valorizada; trabalhar no sentido que leve a sociedade (tomada no seu conjunto ou nos seus componentes individuais) a olhar para as despesas com o património arqueológico como investimento (e não despesa).
Ou seja, resolver estruturalmente (e não apenas adiando conjunturalmente a chegada ao abismo) os problemas que agora vivemos implica agir no sentido da constituição de um retorno social consistente da actividade arqueológica, que permita o “desenvolvimento sustentado” da valorização social da prática arqueológica. Só assim teremos melhoria da qualidade, melhoria das condições de trabalho, melhoria salarial de modo sustentado. A sociedade só está disponível para pagar o que valoriza e a sustentação administrativa de obrigações não socialmente valorizadas é sempre frágil, conjuntural e refém das flutuações no que é, de facto, socialmente valorizado.
Esta é uma missão da Arqueologia, para que o seu corpo profissional se justifique e, justificado, reclame e receba o que lhe é devido.
Mas este é um processo lento, cujo tempo não é compatível com o tempo de alguns problemas actuais prementes: o problema universitário, o problema empresarial, o problema laboral. Se é evidente que estes problemas decorrem em grande medida daquele primeiro problema de fundo, também é evidente que não podem esperar por alterações de natureza estrutural para se resolverem ou minimizarem, até porque eles são peças centrais nessa mudança estrutural.
Daqui decorre que, se todos devemos perceber que não nos podemos centrar apenas na resolução dos nossos problemas pessoais e colectivos do momento e que devemos quotidianamente contribuir para o desenvolvimento de um trend estrutural (única forma de consolidar a disciplina e a sua prática profissional em termos sociais e, logo, político institucionais), também devemos perceber que este problemas conjunturais têm que ser atacados, pois da sua resolução progressiva depende a nossa capacidade de promover as alterações mais profundas.
Um exemplo da aplicação prática da teoria de Giddens sobre a recursividade da relação entre estrutura e agência: é necessário mudar a atitude da sociedade portuguesa face ao património para que os agentes do património se possam dignificar profissionalmente, mas, como esses agentes jogam um papel fundamental nessa mudança estrutural, temos que ir actuando sobre os problemas que os afectam, de modo a que possam sobreviver e ir actuando na mudança.
A terapia tem que actuar, simultaneamente, a diferentes níveis. E várias pessoas estão a trabalhar (no que alguns consideram tempos livres) nesses vários níveis e na mesma direcção. Num esforço de guerra, é tão combatente o que está na frente, como o que trabalha na fábrica, o que faz diplomacia, o que cultiva. É, contudo, precisa alguma maturidade para perceber isso.

A. Valera

Respice Prospice

Em mais um excelente (mas deprimente) diagnóstico do estado da Nação, Medina Carreira escreve hoje no Público que “é óbvia e imperiosa a necessidade de mudar muito no ensino, o nosso maior reprodutor de mediocridade e que está a ‘hipotecar´o futuro daqueles que finge promover; na formação passa-se quase o mesmo, fazendo-se crer na possibilidade de aprender em poucos meses aquilo que só se aprende em alguns anos”.

Nada do que afirma Medina carreira é novidade nem colide contra algumas opiniões que têm sido por aqui expressas. Por exemplo, o Jorge Raposo, referindo-se aos centros académicos onde se dispensa formação na área da arqueologia diz que é preciso que “quem neles obtém um qualquer grau saia bem formado, de todos os pontos de vista, e com as bases necessárias para vir a ser um bom profissional.”

Já o Miguel exige às entidades que fazem a formação dos futuros trabalhadores “muito mais eficácia na criação de competências efectivas” enquanto que para o António Valera um dos aspectos estruturais da situação da arqueologia em Portugal é, “seguramente, a questão da formação (a básica, a secundária e a superior)” já que sem “meios humanos qualificados, técnica, científica, intelectual e eticamente, não há sector que se desenvolva”.

Afinal, em que estado se encontra este sistema de ensino? Aprisionado na armadilha da educação para as massas e na ilusão de que basta dar acesso ao conhecimento a todos para que todos, imediatamente e sem excepção, o tomem como seu, o ensino em Portugal quis andar mais largo do que a própria passada. É que, também ele tolhido financeiramente e dependente da sua capacidade de atrair e fixar alunos para se capitalizar, emite de há vários anos para cá e nos mais diversos comprimentos de onda, o canto da sereia que seduz e alicia os mais incautos para os mais diversos cursos – de preferência, cursos que incorram em poucas despesas de operação e que permitam a entrada de umas boas dezenas de alunos para o corpo discente da instituição.

Vejamos o caso da Arqueologia. Todos os anos abrem cerca de 190 vagas para candidatos a um curso de licenciatura nesta área. Assim, em 2007 e contando com a segunda fase de acesso, entraram ao todo 201 novos alunos nas diversas academias que leccionam este curso (ou seu equiparado): Letras de Lisboa – 49; Minho – 21; Coimbra – 31; Nova de Lisboa – 38; Porto – 47; Tomar – 15. No futuro próximo, a estas vagas irão juntar-se as que a Universidade do Algarve irá criar com a abertura do seu novo curso do 1º ciclo.

Pergunta-se: há trabalho para todos estes licenciados? Tendo em conta o potencial arqueológico nacional, emerso e imerso, há trabalho para todos e para muitos mais, durante muitos e muitos anos.

Mas há emprego para todos estes licenciados? Não há, definitivamente. Há muito que acabou a miragem do pote de moedas de ouro no fim do arco-íris da licenciatura. Agora, ser-se doutor, engenheiro ou arquitecto já não dá bilhete de ingresso assegurado para uma vida de cornucópias, alcavalas, prebendas e benesses mil.

Então, se há trabalho, mas escasseia o emprego, que faz um recém-licenciado em arqueologia para ocupar/ganhar a vida? Não faz muito, até porque as alternativas também não são muitas. Candidatar-se a um emprego fora da área para a qual estudou é uma boa hipótese, quiçá a mais usual. Call-centers e vendas à comissão são os destinos quase que obrigatórios para quem finaliza um curso numa área não essencial e onde se permanece durante mais ou menos tempo, entre idas ao centro de desemprego e resposta a anúncios na área em que se formou.

Depois, há quem, geralmente apoiado por uma rede de segurança familiar bem estabelecida, opte por ingressar em estágios, quase sempre não remunerados, ou então prossiga os estudos, inscrevendo-se numa pós-graduação ou mestrado, depois num doutoramento e até, para os verdadeiros profissionais do estudo, em um ou mais pós-doutoramentos - o que, retirando ao mercado mais um desempregado e inserindo nele um estudante, melhora as estatísticas do Ministério do Trabalho sobre desemprego (por vezes, enquanto cumprem este percurso, alguns conseguem obter bolsas da FCT e ou de outra entidade qualquer, o que não só alivia um pouco a pressão sobre a família como também melhora as estatísticas de outro Ministério, o da Ciência).

Há também aqueles que ingressam no mercado de trabalho da área. Concorrem a um concurso de abertura de vaga para a Função Pública (uma autarquia é bom, se não puder ser, que seja nos serviços da tutela, mesmo a recibo verde que depois logo se vê) e, se forem mesmo bons, ou se conhecerem alguém que conhece alguém relevante - ou se tiverem mesmo muita sorte, conseguem entrar. Se não, vão saltando de escavação em escavação, de empresa em empresa, de acção de acompanhamento em acção de acompanhamento, um sacrifício aqui, um dinheirito que entra acolá, o que já é bem bom, porque o próximo não se sabe muito bem de onde virá ou, mais importante, se e quando virá.

De todos se espera que sejam técnicos perfeitos, logo à saída da Universidade. De preferência, querem-se com carta de condução, carta de marinheiro, com domínio perfeito sobre os mais diversos materiais que possam vir a encontrar, desde os bifaces até ao motor a vapor composto e de tripla expansão, falando francês, inglês, espanhol e alemão, estando à vontade tanto dentro de uma trincheira, ao sol do Alentejo, como a 30 metros de profundidade ou dentro de uma sala de apresentações de uma grande empresa, querem-se a trabalhar expeditamente em AutoCAD, CorelDRAW, Photoshop, Rhinoceros e Arcview, não tendo quaisquer problemas em utilizar uma Estação Total ou um equipamento de GPS acoplado ao programa SIG que se traga no portátil, sabendo automaticamente qual a melhor metodologia a aplicar em cada contexto com que se depara - querem-se, finalmente, com olhos de falcão a prospectar, mãos de cirurgião a escavar e a rapidez do Lucky Luke no produzir de relatórios inteligentes, concisos e inovadores sobre tudo o que investigou e estudou.

Ora, sendo o mundo o que é, e sendo os cursos de Arqueologia o que são, o que sai das Universidades é algo apenas remotamente parecido com o acima descrito. Em primeiro lugar, agora são apenas 3 anos. Ou melhor, são apenas 3 anos a que se retiram 10 meses para férias, feriados e demais interrupções. Depois, há que ter em conta que condensar grandes fatias da nossa história e pré-história em 25 ou 30 aulas deixará necessariamente algo de fora. Finalmente, dado o carácter eminentemente teórico da grande maioria destes cursos (como ficou dito acima, computadores, laboratórios, programas informáticos, as próprias prospecções e escavações, são tudo coisas para as quais o dinheiro não chega nas Universidades) o que fica de três anos de curso é uma quantidade de generalidades, avistamentos fugazes de artefactos que passaram de mão em mão num aula qualquer, conceitos pouco sedimentados e uma licenciatura que habilita o seu detentor a ingressar no mercado de trabalho.

Ora, é fazendo que o licenciado aprende. Melhor, o licenciado aprende vendo fazer – é aqui que entra essa figura fulcral que é o arqueólogo sénior, o patrono, o mestre que ensina ou deveria ensinar o que sabe a quem com ele escava ou prospecta. Todos sabemos como é esse patrono ou mestre: é aquele que olha para um caco com 2 por 3 mm e que, pelo cheiro, pela cor e pela textura , sabe logo se aquilo é da I idade do Ferro ou se é islâmico, é aquele que usa judiciosamente a picareta quando sabe que o que está a ver é camada de aterro e que usa apenas o pincel quando está numa camada potencialmente interessante, é o que identifica à primeira um murete de pedra como sendo parte de um fórum e não parte de um teatro.

É no mercado de trabalho e nas mais diversas escavações que o recém-licenciado adquire o saber-fazer. Portanto, esperar que sejam as Universidades a formar um técnico completo em apenas 3 anos (ou em 3+2, que é a tendência que se adivinha no horizonte) é ser-se ingénuo. As Universidades não estão nesta corrida para formar bons arqueólogos – as Universidades formam apenas licenciados em Arqueologia (o que não é o mesmo que dizer Arqueólogo) assim como concedem mestrados e doutoramentos não necessariamente a quem sabe mais sobre um determinado tema ou a quem encontrou um ponto em branco no conhecimento científico, mas sim a quem disponibilizou tempo e dinheiro para a sua conclusão. Porque uma coisa é o querer dos diversos Departamentos – que não duvido por um segundo ser o querer instilar excelência académica, científica e técnica nos seus alunos através do ensino que ministram – e outra coisa é a realidade do País, da sociedade e do Ensino que temos.

Cabe aos licenciados interessar-se, ler o que houver para ler, informar-se, intervir, procurar, indagar, preocupar-se, formar-se, ler mais ainda e praticar mais e mais, cada vez mais - eventualmente, serão cada vez mais melhores técnicos, com mais e mais valências, e passarão a ser eles os patronos, recipientes do saber que importa agora transmitir a quem vem de novo. Cabe às empresas, à tutela e às associações proporcionar oportunidades de formação e informação a estes interessados.

Só restam duas perguntas: ainda haverá gente suficiente, com conhecimento e vontade e disponibilidade para o partilhar? E ainda haverá quem dele queira partilhar?

2008-06-12

Acreditação, Credenciação e Autorização

O repto da Jacinta acerca da acreditação das empresas serve-me de justificação para recuperar uma ideia antiga: um post sobre este tema das acreditações, credenciações e autorizações.
Na altura, a ideia nasceu de uma discussão aqui havida em que era claro que nem todos estávamos no mesmo comprimento de onda e que urgia clarificar os termos.
Façamos então antes de mais este ponto de ordem.

Importa não confundir a ACREDITAÇÃO DAS EMPRESAS (controlo prévio da sua capacidade para a realização de trabalhos de Arqueologia -- e quais tipos de trabalhos), com a CREDENCIAÇÃO DOS ARQUEÓLOGOS (controlo ainda prévio e genérico da capacidade individual para a realização de trabalhos de Arqueologia) e AUTORIZAÇÃO PARA INTERVENÇÕES CONCRETAS (controlo, sempre prévio, da adequação de um determinado plano de intervenção à execução de um trabalho arqueológico específico, sobre um sítio determinado).

Para lá do objectivo geral de preservação do património histórico-arqueológico, procurando evitar-se preventivamente que empresas e/ou arqueólogos sem condições materiais ou capacidade técnica provoquem perdas deste património, os valores e interesses protegidos por estes três tipos de fiscalização a priori são claramente distintos.
Simplificando um pouco:

- A CREDENCIAÇÃO DOS ARQUEÓLOGOS, vulgo "carteira profissional" visa antes de mais (1) proteger corporativamente a classe profissional dos arqueólogos, quer no seu interesse individual de garantir a exclusividade da execução de trabalhos de Arqueologia por técnicos especializados, quer (2) no seu interesse colectivo de proteger a imagem social da qualificação deste sector profissional, nomeadamente através da imposição de um código deontológico da profissão;

- A ACREDITAÇÃO DAS EMPRESAS visa: (1) proteger a segurança da actividade económica, garantindo aos diversos agentes económicos que as empresas acreditadas são capazes de executar um serviço para o qual se apresentam no mercado (dispondo para isso de meios materiais, financeiros, equipamento, meios humano e organização suficientes); e, no caso de se optar por um sistema de acreditações discriminantes (por período cronológico, por tipo de trabalho, etc.), (2) promover que os trabalhos de Arqueologia a realizar serão tendencialmente executados pelas equipas que são mais capazes para cada um dos ditos critérios discriminantes;

- Finalmente, a AUTORIZAÇÃO PARA REALIZAÇÃO DE INTERVENÇÕES ARQUEOLÓGICAS CONCRETAS visa sobretudo (1) proteger o interesse público da gestão correcta do património histórico-arqueológico do país, permitindo uma avaliação caso-a-caso quer da justificação da afectação daquele património, quer da adequação dos meios e métodos propostos pelo(s) responsável(/is) técnico(s) da futura intervenção.

Duas notas finais:
1. Obviamente, decorre dos objectivos e dos interesses a proteger por cada um dos mecanismos descritos que a acreditação das empresas e a autorização casuística dos trabalhos devem manter-se na esfera de decisão pública, enquanto a credenciação profissional dos arqueólogos deveria idealmente evoluir para uma estrutura associativa de cariz profissional.
2. Até hoje, revelámos uma incapacidade gritante de criar procedimentos administrativos e estruturas associativas capazes de acreditar empresas e credenciar arqueólogos. Não obstante, isto não significa que a necessidade destas credenciações e acreditações não exista. Em consequência, como solução de recurso, atribuímos ambas estas responsabilidades ao mecanismo da autorização casuística, por exemplo com o procedimento bastante híbrido da necessidade de um primeiro pedido ser apresentado em colaboração com um arqueólogo mais experimentado. Estas soluções, que têm uma data e uma justificação conjuntural clara, estavam a médio prazo votadas a um fracasso inelutável.
Devemos hoje avançar no sentido de institucionalizar aqueles outros procedimentos de forma cristalina.

Em resumo:
1. não penso haver qualquer sobreposição entre credenciação profissional, acreditação de empresas e autorização de intervenção; e
2. em minha opinião, no momento actual da Arqueologia portuguesa, todos os três mecanismos são indispensáveis.

Aliás, tudo isto me parece bastante consensual.
Por isso, espero que este post sirva sobretudo para nos recentrar em discussões de conteúdo, em vez de prosseguir com os desparrames e desperdícios de energia que aqui tenho presenciado recentemente.
E com tudo isto, o texto já vai longo para começarmos com ideias sobre como fazer a acreditação de empresas. A questão é das mais complexas a resolver na Arqueologia de salvamento em Portugal e as opções que fizermos a este respeito num futuro próximo / médio condicionarão a realidade da Arqueologia nacional por muitos e bons anos.
Fica para a próxima.

2008-06-09

Acerca de Castilla-León e dos movimentos para-sindicais na Arqueologia ibérica

Também eu tenho acompanhado na medida do possível os movimentos recentes em Espanha relativos às condições de trabalho em Arqueologia de salvamento.
Obviamente, sou muito favorável, quer à ideia em si, quer ao aspecto que salienta o Jorge, relativo à necessidade de aumentar a intervenção de todos nas discussões de carácter sócio-profissional.
Nem seria preciso um novo post meu para afirmá-lo.

Porém, o que motiva estas linhas é uma reflexão diferente -- e seguramente menos consensual! -- sobre esta questão.

É que os factos não existem fora do seu contexto social, profissional, político, etc., e a análise da conjuntura faz-me temer dois efeitos perniciosos possíveis de uma acção deste tipo no momento actual:
1. O que esta intervenção pretende (e talvez consiga) é aumentar a pressão sobre as empresas no sentido da melhoria das condições de trabalho. Em si é positivo, mas esta pressão não será homogénea. As empresas mais institucionalizadas são as que mais rapidamente vão sentir-se compelidas a integrar estas alterações e, portanto, tenderá a acentuar-se uma desigualdade de obrigações que é desfavorável às empresas mais cumpridoras e com mais preocupações de qualidade, face a outras que resistirão mais tempo a subir os salários. Sim, porque não creio que se consiga unanimidade entre os prestadores de serviços, cujo insuficiente rigor ético, segundo parece, permite inclusivamente destruir património conscientemente e até desviar activamente bens patrimoniais, como já aqui neste blog foi confessado... anonimamente -- o que me faz recear que tais actores estejam ainda mais disponíveis para "furar" esta determinação de classe, sempre em nome das mesmas necessidades financeiras de subsistência;
2. Exigir melhores remunerações implica também oferecer melhores competências técnicas e aqui é que a porca torce um pouco o rabo, porque (não é novidade para ninguém!) penso que a qualificação técnica dos prestadores de serviços no sector da Arqueologia em Portugal é, em média, extremamente deficiente. Nestas condições o risco adicional (o tal segundo efeito pernicioso possível) introduzido por um acordo deste género é que face ao aumento dos honorários destes prestadores de serviços se verifique um movimento (ainda mais acentuado do que o actual!) no sentido de substituir nos diversos cargos trabalhadores por outros cada vez menos qualificados: técnicos por indiferenciados, arqueólogos por técnicos, inexperientes em vez de experimentados.

Assim, conhecendo bastante bem a realidade da formação e do mercado de trabalho do sector da Arqueologia em Portugal, e um pouco em Espanha, aconselharia a que estes movimentos, sempre justificados pela defesa do património, incluissem também outras reivindicações para além da exclusiva exigência de "melhores condições"que, convenhamos, frequentemente não ultrapassa as ambições financeiras (legítimas, diga-se!).

Não há milagres! Estas coisas não se resolvem por vontade de uns quantos, nem de um dia para o outro. Implicam pelo menos duas outras áreas de intervenção, para além desta sobre as empresas:
1. A montante, sobre as entidades que fazem a formação dos futuros trabalhadores, a quem devemos exigir muito mais eficácia na criação de competências efectivas;
2. A jusante, sobre as entidades da tutela, a quem devemos exigir uma actividade de fiscalização muito mais rigorosa, que imponha de facto ao universo das empresas de Arqueologia um aumento da qualidade geral.

Sem estas outras duas intervenções, a acção sindical (repito: em si mesma positiva!) comporta na situação actual mais riscos do que benefícios.

2008-06-06

Petição Online sobre biblioteca de Arqueologia, arquivos e publicações

Por solicitação de Rui Boaventura, publica-se com todo o gosto a mensagem seguinte, apelando à participação dos leitores deste blogue.


Encontra-se a decorrer uma petição dirigida ao Ministro da Cultura a manifestar grande preocupação para o "destino incerto" que se antevê "para a Biblioteca, Arquivo e Publicações do ex-IPA, hoje IGESPAR, IP" (http://www.PetitionOnline.com/biblipa/).

A Resolução do Conselho de Ministros n.º 78/2008 (D.R. n.º 94, Série I de 15-05), referente à requalificação e reabilitação da frente ribeirinha da cidade de Lisboa, prevê que na área onde actualmente se localiza a Biblioteca de Arqueologia e o Arquivo se venha a construir o novo Museu Nacional dos Coches, devendo iniciar-se a obra ainda no decorrer do corrente ano, de forma a encontrar-se concluída a tempo das comemorações do primeiro centenário da implantação da República em 2010.
Não estando prevista qualquer solução respeitante às instalações do ex-IPA, a demolir previsivelmente no próximo mês de Setembro, os subscritores do abaixo-assinado vêm manifestar a sua grande apreensão com o futuro da maior biblioteca especializada em património arqueológico do País.
Trata-se de uma biblioteca pública que tem vindo a servir estudantes universitários, professores, investigadores e todos os interessados.

A Biblioteca do ex-IPA resultou da cedência, em 1999, em regime de comodato, pelo Estado Alemão ao Estado Português, aquando da extinção da delegação de Lisboa do Instituto Arqueológico Alemão, mediante protocolo assinado entre os dois Estados em 31 de Maio de 1999.
A partir desse momento, o Estado Português assegurou a sua manutenção em instalações adequadas, tendo a mesma vindo a ser ampliada quer através de aquisições anuais quer com base numa política de publicações próprias, que possibilitou permutas com mais de 300 instituições congéneres e de investigação arqueológica, nacionais e estrangeiras.
Actualmente, esta Biblioteca disponibiliza ao público cerca de 55.000 volumes, entre monografias e publicações periódicas, procuradas por investigadores e arqueólogos portugueses e de outras nacionalidades.
O seu encerramento constituiria assim um rude golpe na formação e investigação científica e patrimonial portuguesa, pelo que é indispensável assegurar não só a sua conservação integral, como garantir a sua reinstalação urgente e condigna, pois de outro modo corre-se o risco de a mesma sair do País por incumprimento das condições da cedência do seu núcleo inicial pelo Estado Alemão.

Até ao final de 2007, a actualização do acervo desta Biblioteca vinha sendo garantida essencialmente pela permuta de dois títulos de edição própria, a "Revista Portuguesa de Arqueologia", de periodicidade semestral, e a série monográfica "Trabalhos de Arqueologia", com uma média anual de quatro volumes.
Durante a última década, estas publicações, cuja qualidade tem vindo a ser reconhecida além-fronteiras, têm desempenhado um papel fundamental na difusão científica da actividade arqueológica nacional.

Acresce a isto a preocupação com o Arquivo do ex-IPA, dotado de um acervo histórico complementar ao da Biblioteca, onde se encontram os relatórios dos trabalhos arqueológicos realizados em Portugal desde o Estado Novo até à actualidade, muitos dos quais nunca foram publicados, pelo que são de extrema importância para qualquer investigação.

Esta petição online conta já com cerca de 900 subscritores, sendo na sua grande maioria arqueólogos e professores universitários. Deve destacar-se também a participação de muitos investigadores estrangeiros de grande renome, alguns deles com projectos científicos respeitantes ao território português.

Rui Boaventura

Regulamentação da Lei de Património

A Lei n.º 107/01 de Setembro de 2001 que estabelece as bases da política e do regime de protecção e valorização do património cultural, está quase a atingir os 7 anos de idade. Há muito, muito tempo, foi constituída uma Comissão no Ministério da Cultura para a sua regulamentação. Não se poderá dizer que esta regulamentação tarda, pois, a anterior Lei de Bases vigorou durante 16 anos e nunca foi devidamente regulamentada.
Em certos momentos questiono-me mesmo se a regulamentação é necessária, ou para que servirá exactamente.
Que a nossa profissão age sobre o Património, é um facto. Logo, é natural que a regulamentação da Lei do Património, no que diz respeito à Arqueologia, tenha fortes áreas de intercepção com as questões relacionadas com o exercício da profissão de arqueólogo e com a regulamentação da actividade arqueológica.
Assim, passo a elencar um conjunto de questões que, na minha opinião, deverá ser objecto de regulamentação, colocando-as por este meio à discussão pública.
Deixo apenas duas notas prévias:
I. Não podemos confundir regulamentação da actividade arqueológica com auto-regulação profissional, ou seja, definição de critérios de acesso e acreditação à profissão e deontologia profissional: esta responsabilidade cabe aos Arqueólogos e não ao Estado;
II. Considero que neste momento não estão reunidas as condições adequadas na Tutela da Cultura e na Tutela Arqueológica em particular (cujo conceito está cada vez mais difuso, passado um ano da extinção do IPA), para proceder a alterações legislativas de qualidade. Os organismos estão desestruturados e a funcionar mal, vive-se uma crise que preenche os responsáveis políticos e técnicos de preocupações, relacionados com a actividade quotidiana, com o dia-a-dia, com o orçamento, com petit riens que são petits touts… Logo não há um ambiente propício, nem possibilidade de emergir a massa crítica de qualidade que é necessária, parta com seriedade, produzir legislação. Logo, acho que as nossas prioridades são outras… Mas como “está tudo ligado”, ir discutindo os assuntos publicamente, não faz mossa muito pelo contrário.

Assim, cá vai:

Questões relacionadas com a regulamentação da actividade arqueológica

1. Direcção científica – quem está apto para dirigir trabalhos arqueológicos
1.1. Critérios de habilitação profissional de Arqueólogo: quais os cursos (critérios) e graus (processo de Bolonha) que conferem a habilitação (questão a ser resolvida no âmbito da auto-regulação
1.2. Possibilidade de partilha da responsabilidade científica entre arqueólogos e empresas de arqueologia
1.3. Critérios de avaliação de adequação curricular de um arqueólogo para a realização de um trabalho arqueológico específico
1.4. Clarificar a questão da acumulação simultânea de autorizações para diversos trabalhos arqueológicos
1.5. Disciplinar as alterações de responsabilidade científica num mesmo trabalho científico
1.6. Clarificação do conceito de prioridade científica; definição e aplicação uniforme de critérios objectivos e públicos

2. “Acreditação” de empresas de arqueologia
2.1. Qual o formato legal
2.2. Quais os critérios (técnicos, científicos, de infra-estrutura, de quadro técnico, de cumprimento de obrigações técnicas e administrativas)

3. Enquadramento dos trabalhos arqueológicos de Categoria A e B
3.1. O PNTA deverá constituir-se como um verdadeiro instrumento de definição de políticas nacionais de investigação arqueológica (na definição de prioridades)
3.2. Re-definição dos processo de submissão e aprovação de projectos de investigação e investigação/valorização, no sentido de promover a avaliação de mérito científico e a adopção de uma política de independência e transparência (comissão científica independente não deverá apenas pronunciar-se sobre projectos financiados)
3.3. Disciplina na política de autorizações: só poderão ser autorizados trabalhos sem enquadramento preventivo, se enquadrados em projectos de investigação ou investigação/valorização aprovados

4. Regulamentação da “Arqueologia Urbana”
4.1. Definição do papel dos instrumentos de gestão urbanística (PDM, PP, PU, etc) da gestão arqueológica da cidade
4.2. Definição clara dos níveis de intervenção da tutela e das autarquias locais (serviços municipais de arqueologia) na gestão arqueológica da cidade
4.3. Estabelecimento de boas práticas ao nível da implementação de sistemas de informação arqueológicos georeferenciados urbanos
4.4. Definição de uma política uniforme de reservas de espólios arqueológicos da cidade (impedindo a dispersão de espólio, documentação e informação)
4.5. etc

5. Regulamentação dos trabalhos arqueológicos realizados no âmbito de processos de AIA
5.1. Re-definição dos termos de referência na elaboração do descritor património arqueológico em estudos de impacte ambiental
5.2. Clarificação do papel da tutela na participação nos processos de AIA (integração nas comissões, carácter vinculativo dos pareceres, etc)

6. Fiscalização da actividade arqueológica
6.1. Cumprimento das obrigações legais científicas, técnicas e administrativas (entrega de relatórios, presença efectiva e direcção, publicação atempada dos trabalhos, etc) pelos arqueólogos
6.2. Definição de critérios objectivos e públicos da aplicação de sanções por incumprimento; aplicação uniforme dos critérios previamente definidos
6.3. Ponderação da necessidade/benefício da avaliação qualitativa dos trabalhos arqueológicos (actualmente a avaliação é essencialmente técnica e administrativa)
6.4. Definição de formas e critérios de avaliação da qualidade dos trabalhos (tanto ao nível da fiscalização de campo, como ao nível da avaliação de relatórios técnico-científicos)

7. Depósito do espólio
7.1. Regulamentação do processo de depósito de espólios arqueológicos (clarificação de regras e prazos, fiscalização da sua aplicação e estabelecimentos de sanções) (actualmente o enquadramento legal é algo difuso e confuso)
7.2. Implementação da Rede Nacional de Reservas Arqueológicas (definição e aplicação de critérios objectivos e públicos na “acreditação” de reservas arqueológicas)

8. Publicação dos resultados da actividade arqueológica
8.1. Definição de critérios e níveis de publicação/divulgação científica em função da natureza e resultados dos trabalhos arqueológicos
8.2. Definição de prazos, fiscalização da sua aplicação e estabelecimentos de sanções

9. Criação de um Observatório para a actividade arqueológica (estrutura informal, com participação de entidades externas) que monitorize permanentemente a evolução, as tendências, as características locais e regionais, etc, da realidade nacional, tornando-o um instrumento de apoio à decisão da definição de políticas públicas de gestão arqueológica

O que fazer com esta Arqueologia?

Este post é em tudo uma simples resposta ao Alexandre, e só vai aqui porque como resposta não podia ter imagem. E fazia-me falta mostrá-la (pode-se aumentar com dois cliques).

1.
O problema não deve, nem pode colocar-se em termos de contrapor o valor patrimonial de um sítio ao valor venal de uma obra, como se o património fosse um valor absoluto em cujo alter devemos sacrificar tudo.Já o disse aqui: a sociedade actual é democrática e dialógica. O valor constrói-se na intervenção pública, não se obtém por decreto. E ainda bem! De facto, não penso que me desse bem num sistema de filósofos-reis, porque são todos falsos. O positivismo e toda a tralha conceptual agregada já lá vão há muito e penso ser pacífico para todos que nada tem um valor absoluto, ou sequer consensual.
Não perder de vista que o "mundo ideal" de que falas é só teu! O meu é diferente. O de cada um é diferente. E no momento presente a soma dos "Portugais ideais" ainda não faz uma maioria de "ideais" com o património preservado. Longe disso: para a maioria aquilo a que chamas o mundo ideal seria uma visão pouco menos do que dantesca dos "quintos dos infernos".
Eis o que nos deve preocupar: bater-mo-nos pelo nosso futuro ideal, mas conscientes de que teremos que provar constantemente a sua validade.

2.
Não obstante, e sem que seja muito patriota, nem muito fã do caminho que as coisas levam em Portugal, também não penso que devamos insistir no discurso de que por aqui tudo é tão especialmente negro.
Por exemplo, em relação aos problemas que referes a respeito da relação desproporcionada do investimento em salvamento e em investigação programada e a respeito da famosa carta arqueológica...
Voila o porquê da necessidade da imagem: Portugal vs Region Centre. Estão ambos à mesma escala, para transformar aquela área numa ordem de grandeza que nos seja familiar a todos. Cerca de um terço da área de Portugal, mais coisa, menos coisa.
Ora, o interessante de notar é que nesta Region Centre da "França-pátria-da-Pré-história" havia em 2007 quantos projectos activos de Pré-história com escavações, etc?... TRÊS!
São os ares do nosso tempo e basta dar um salto pelo site do INRAP para saber em que Arqueologia é que o estado françês está a meter o "bagalhuço".
A carta de sítios também é divertida. Achas estranho que em certas zonas tão pequenas haja uma concentração de sítios tão díspar de tudo o que se vê à volta?
Qual é a tua aposta: que isto resulta de facto de uma ocupação / índices de preservação diferenciais ou apenas que... A concentração de sítios arqueológicos corresponde às áreas onde tem havido trabalhos continuados face aos vazios de investigação (e de prospecção) à volta?
A resposta é simples: lá, como cá!
Em suma, nem tudo é mau em nossa casa, embora, repito, à escala das nossas vidas os dramas pareçam intransponíveis e o tempo demasiadamente lento.

3.
Ainda assim, a tua pergunta era desnecessária. Sabes bem que continuo a pensar que o que escrevemos no low-cost é actual e mesmo que penso que a evolução da situação desde que a Al-Madan nos publicou não cessa de piorar.
Coisa diferente seria aceitar que devemos deitar fora o menino com a água do banho.
O facto de a (maioria das) intervenções de salvamento serem hoje tecnicamente deficitárias e, muitas vezes, pouco úteis não nos autoriza a por em causa os princípios estruturantes do salvamento arqueológico.
Faço minhas as palvras do António Valera, em tudo: em relação à necessidade e justificação do salvamento; ao retorno da Arqueologia (aliás, de toda, não apenas da de salvamento!); à qualidade das intervenções; à questão da formação, técnica, científica e ética; e sobretudo a respeito das condições de sustentabilidade da Arqueologia no ambiente social deste século.

2008-06-05

Barafustar sem solução, ou fazer algo para mudar a situação?

Na rede Arqueohispania, foi distribuída ontem, dia 4, em nome de um grupo de arqueólogos das províncias espanholas de Castela e Leão, uma mensagem de que não resisto a publicar aqui uma tradução livre do essencial.

“Como saberão, no sábado 24 de Maio celebrou-se a primeira reunião de trabalhadores de arqueologia de Castela e Leão, uma reunião muito positiva, se tivermos em conta que foi o primeiro contacto entre os profissionais na nossa comunidade e considerarmos a assistência (uma quarenta pessoas) e a representatividade […].
Quanto aos temas debatidos, houve um grande consenso na necessidade de nos agruparmos e elaborarmos um contrato colectivo, assim como nos pontos de maior relevância para melhorar a qualidade e dignificar o nosso trabalho. As discrepâncias surgiram no momento de abordar o caminho a seguir para a elaboração do contrato, processo para o qual se propuseram duas vias: por um lado, a criação de uma associação de arqueólogos e a eleição de uma comissão de representantes que se encarregue de elaborar os diferentes pontos do contrato, num modelo similar ao que se adoptou em Madrid […]; uma vez aprovado e consensualizado entre todos um primeiro esboço, seria necessário fazê-lo chegar aos diferentes sindicatos e começar o árduo processo de negociação. Por outro lado, a segunda das vias propostas consiste em contactar desde o primeiro momento as organizações sindicais, quer através dos representantes eleitos, no caso das empresas com mais de seis trabalhadores, quer pelo contacto directo nos casos restantes, para que estes tratem da elaboração do contrato e da sua negociação.
Finalmente, comentou-se a necessidade de fazer chegar o nosso propósito aos confins da região, já que aglutinar o máximo possível de trabalhadores de Castela e Leão neste caminho é um dos principais objectivos. E, por último, decidiu-se convocar rapidamente uma nova reunião, onde procuraremos alcançar decisões firmes e ir avançando.
A data para essa reunião será sábado 28 de Junho […].
Sem mais, uma saudação a todos, solicitando que façam chegar esta mensagem a todos os que possam estar interessados no tema, já que a unidade e o empenho de todos os arqueólogos é o primeiro passo para ter êxito.”


Ou seja, sem esperar soluções milagrosas vindas não se sabe de onde ou impostas por algum “iluminado”, os principais interessados procuram soluções organizadas para enfrentar a situação. E essas soluções passam por assentar ideias (nas tais reuniões que alguns dizem não servir para nada), materializá-las em propostas aceites pela maioria, e conquistar força suficiente para lutar por elas.
Depois do exemplo de Madrid, eis mais um processo que devia dar que pensar aos que mais sentem na pele as dificuldades por que passa o exercício profissional da Arqueologia no nosso país.
E não esquecer que, aqui, até já temos uma Associação Profissional de Arqueólogos.

Onde se fala de salvação e de salvados

Em comentário a um comentário meu mais abaixo, em relação à minha pergunta sobre se não andaria a arqueologia portuguesa a reboque das escavações de emergência, o Miguel referiu-se, de forma mais alargada, à arqueologia de salvamento. Em primeiro lugar, tem toda a razão o Miguel quando opta por usar a terminologia “arqueologia de salvamento”: respondi arqueologia de emergência porque era essa a referência a que se aludia no comentário anterior, não tendo sido, por minha culpa, explicito o suficiente. O que não é desculpa alguma – como bem disse o Mário Cláudio numa entrevista recente, quem escreve mal pensa mal.

Em todo o caso, eu nunca pretendi dizer que as intervenções de salvamento deveriam ser justificadas por problemáticas científicas. O que eu pretendia dizer era que não há uma qualquer problemática científica prévia a esse tipo de acções – nem nas de emergência nem nas preventivas já que ambas, por natureza e por definição, acontecem por reacção a uma ameaça que acontecerá num futuro mais ou menos iminente. Mas concordo contigo, Miguel – se houvesse investigação, em quantidade e qualidade, porventura as acções preventivas e de emergência seriam bem menos. Por exemplo, causa-me certa confusão haver quem especule sobre a putativa existência de caravelas quatrocentistas portuguesas afundadas em território nacional (apesar de se andar com a frase “os novos mundos que Portugal deu ao mundo” na boca desde os tempos em que a pérfida Albion proclamou o seu Ultimato sobre o mapa cor de rosa, ninguém sabe como é que eram os navios que levaram a proverbial Ínclita Geração até lá, já que não há deles um único exemplar estudado, documental ou arqueologicamente falando) mas não haver quem faça campanhas sistemáticas para prospecção e achamento dessas mesmas caravelas.

Pergunto-me: porque é que não existem? Não terão as Universidades interesse em enviar dois ou três especialistas a percorrer esses rios e rias de jusante a montante e essa costa de cabo a cabo? Que se faz da Estratégia Nacional para o Mar e do Livro Verde para a Política Marítima da Comunidade Europeia, em que a componente arqueológica náutica é valorizada e destacada? É letra morta? Não interessará ao Estado continuar a elaborar as cartas arqueológicas do nosso território (como a tal está obrigado por força das Convenções internacionais que assinou e ratificou, como a de Malta, artigo 7, ponto 1)?

Ou haverá interesse e não há dinheiro para pagar ordenados, navios e equipamentos? E estará toda a gente à espera que se promovam os estudos de avaliação de impacto ambiental, pagos por promotores de obra, e aí o tempo será forçosamente mais escasso, com prejuízo iniludível para a qualidade do trabalho científico, os restos das caravelas registadas em 5 cinco dias, porque é preciso que a obra avance e não há quem defenda a sua paragem ou, pelo menos, a sua reformulação?

Será que depois do caso do Coa, ainda há quem tenha a coragem de defender uma opção zero? Será que é ainda possível contrapor o valor patrimonial de um sítio versus o valor venal da obra em causa?

Estas são perguntas que faço a mim mesmo, embora não seja, definitivamente, a pessoa mais indicada para discursar sobre este tema. Primeiro porque, ao contrário do Miguel, a minha experiência em arqueologia preventiva se resume a três intervenções, todas em frente aquática, uma das quais culminou, por uma série de trapalhadas políticas, em embargo de obra e consequente arqueologia de emergência (embora se soubesse há mais de um ano aquilo que lá estava e até se tivesse decidido o destino a dar-lhe), sempre no seio do ex-CNANS e não dentro da lógica empresarial.

Depois porque, feliz ou infelizmente, aquilo que sei sobre o panorama actual da arqueologia portuguesa (tirando o caso específico da que se desenvolve em meio aquático) tem origem naquilo que leio aqui e acolá, ou seja, conheço os projectos e as acções publicadas bem como as pessoas responsáveis pelas mesmas apenas pela sua produção científica ou opinativa – o que, se felizmente me poupa quase que integralmente ao diz-que-disse-que-disse que afecta tão profundamente a classe, acaba por me sonegar alguma dessa informação crucial que aparentemente só se adquire, ou em contactos pessoais, ou nos intervalos dos colóquios e congressos, por entre um café e um bolinho.

Portanto, a minha avaliação sobre a arqueologia de salvamento é mais impressionista que realista – agradeço assim que me corrijam onde estiver errado já que isto é tudo tão complexo que fácil é perdermos o fio à meada.

E isto – e, quando digo isto, refiro-me ao País, a este povo que nele habita, à arqueologia que por cá se pratica, ao Património, à academia, ao tecido social, à cidadania e por aí fora – isto, dizia eu, anda tudo ligado, isto é um novelo cheio de pontas e nós, uns cegos, outros tortos, outros direitos, em que falar de uma coisa é acabar a falar de outra, sendo cada coisa consequente da outra e vice-versa.

Assim, dado o acima exposto, hesito por onde começar. Talvez pelo equívoco gerado. É claro que sou totalmente a favor da arqueologia de salvamento – é infinitamente melhor obter apenas 10% dos dados passíveis de se obter de um sítio do que deixar que 100% desses mesmos dados sejam destruídos. Este tipo de prática arqueológica constitui, sem dúvida alguma, em relação ao panorama que se vivia no ordenamento do território prévio à década de 90 do século passado, um salto civilizacional para a frente medido, não em centímetros, mas em anos-luz.

Contudo, relembro que, ao contrário do que a Jacinta Bugalhão dava a entender na sua apresentação para a “Arqueologia em Revista” de Belém, esse salto ocorreu sem que houvesse qualquer súbito rebate de consciência a assaltar os que intervêm no solo, subsolo e leito marinho do País, construindo, dragando, aterrando ou demolindo nas mais diversas frentes de obra, instantaneamente tornando-os conscientes da importância do património cultural e da sua defesa, preservação e estudo. Nem houve sequer um qualquer súbito ganho de respeito pelos arqueólogos e pelo trabalho que eles executam.

O que houve, isso sim, foi a transposição para direito interno português da Directiva 85/337/CEE relativa à avaliação dos efeitos de determinados projectos públicos e privados no ambiente (Decreto-Lei nº 186/90, de 6 de Junho, e do Decreto Regulamentar nº 38/90, de 27 de Novembro) e que resolveu o problema que o Estado tinha em fazer conciliar uma obrigação sua – proteger, estudar e prevenir a destruição do património cultural – com uma sua deficiência estrutural – a falta de recursos logístico-financeiros e humanos - na prática transferindo para o sector privado, agora financiado pelo princípio do poluidor-pagador, essa sua obrigação.

Assim, a existência hoje em dia da arqueologia contratual é uma obrigatoriedade que nos foi imposta como uma das muitas consequências da adesão de Portugal à Comunidade Europeia (obrigatoriedade essa que, mesmo assim, teve que ser clarificada e reforçada desde essa data pela direcção do IPA, honra lhe seja feita, e que viria a culminar na célebre Circular de 10 de Setembro de 2004, em que se definiram os termos de referência para o descritor património arqueológico em Estudos de Impacte Ambiental, de modo a que imperasse, em letra de lei e na prática, uma concepção mais abrangente de ambiente, onde a vertente do património arqueológico passasse a estar obrigatoriamente incluída no conteúdo dos EIA – algo se que terá tentado, mais ou menos atabalhoadamente, colmatar com o Decreto-Lei 48/98, de 11 de Agosto e 69/2000, de 3 de Maio, este actualizado pelo 197/2005, de 8 de Novembro).

Ora, esta obrigatoriedade - que acarretou mais custos e perdas para os promotores de obra, logo menos valias a serem realizadas pelos mesmos e, regra geral (admito que hajam excepções) mais antipatia dos mesmos em relação aos arqueólogos e ao próprio património - colidiu não só com os seus interesses materiais como com a nossa proverbial falta de cultura de apreciação, defesa e protecção do património cultural. Não obstante a Constituição da República Portuguesa acolher a defesa dos direitos culturais e do património cultural do povo português – nos artigos 9º, alíneas d), e) e f), 74º, nº2 e 78º, nº2, alínea c), consagrando-as como tarefa fundamental do Estado e de fazer incumbir ao Estado a criação de reservas e Parques Naturais e de recreio, bem como classificar e proteger paisagens e sítios de modo a garantir a conservação da natureza e a preservação de valores culturais e de interesse histórico ou artístico como direito fundamental dos cidadãos, no artigo 66º, nº2, alínea c), reforçando ainda ser direito e dever de todos, Estado e cidadãos, não só não atentar contra o património cultural como também o defender, impedindo a sua destruição (artigo 78º) – não obstante tudo isto, estamos ainda bem longe de a fruição, o estudo e a preservação do património cultural constituírem verdadeiramente um bem jurídico e um direito fundamental de todos os cidadãos à luz da nossa Lei Fundamental.

Sendo assim tão recente esta nossa nova realidade – que, reitero, nos foi imposta e ainda se encontra tão pouco assimilada e interiorizada – parece-me ser bem diminuta a quantidade de projectos científicos plurianuais a decorrer relativamente ao número das acções de arqueologia preventiva e de emergência que se fazem um pouco por todo o território nacional (mais uma vez, falo de modo impressionista, não sei se haverão números concretos – tê-lo-á a tutela, certamente. Seria interessante saber que percentagem da nossa arqueologia nos últimos anos tem sido dedicada a projectos de investigação, a projectos de valorização, a acções preventivas e a acções de emergência). Para esta relação perigosamente desequilibrada, que corre ao arrepio do que deveria ser a política patrimonial cultural portuguesa, concorre quase que exclusivamente um único factor: o financiamento. Follow the money, dizem os anglo-saxónicos e se há dinheiro (por enquanto...) é no imobiliário e na construção civil pública. Onde não há, é certamente na academia e na tutela.

Se vivêssemos num mundo ideal, estariam já identificados os potenciais arqueológicos de cada parcela do território nacional, emerso ou submerso. Ainda num mundo ideal, o Estado seguiria o que ratificou na Convenção de Malta e adquiriria para si (ou seja, para nós todos, cidadãos) os territórios mais relevantes em termos desse mesmo potencial, ainda na posse dos privados, de modo a constitui-los em reserva arqueológica.

Infelizmente, não vivemos num mundo ideal, vivemos em Portugal, país em que o até o próprio Estado por vezes destrói, ou deixa destruir, com obras suas ou de outrem, o seu património ambiental e/ou cultural.

Vivemos num país em que o dinheiro não abunda, escasseia até, em que a consciência ambiental e cultural de cada um não melhora por decreto, num país em que o pato-bravismo e o arrivismo ainda campeiam por essas terras fora. Ora, neste país real em que vivemos, em que as cartas arqueológicas ainda se encontram muito incompletas ou apresentam grandes zonas em branco (como exemplo, basta ver aquilo que se sabia existir na zona do Alqueva antes do estudo de AIA que se fez aquando da construção da barragem e aquilo que se ficou a saber após a sua execução) é o dinheiro aquilo que faz, por agora, mover a actividade arqueológica. Actividade essa que, como disse mais acima, não corresponde necessariamente à produção de novo conhecimento ou até à protecção e defesa desse património, tanto mais que vivemos uma época conturbada em termos de tutela, tutela essa que foi não só sangrada, tanto em termos financeiros como em recursos humanos, como ficou diminuída em termos hierárquicos, subalternizando-se mais uma vez ao património arquitectónico.

Escrevia o Vítor Oliveira Jorge, em 2000 (na revista da ERA), que as empresas de arqueologia representavam a vontade livre de grupos de cidadãos que se juntavam para, muito legitimamente, quererem ganhar a sua vida fazendo arqueologia, devendo ser profissionais competentes sob pena do o mercado se encarregar de os eliminar. Acautelava, no entanto, que não se poderia colocar a arqueologia a reboque dos poderes económicos, como um mero elemento decorativo, ou como uma desculpa para proceder a uma destruição sem precedentes do património, legitimada agora pela ‘intervenção arqueológica prévia’ que é muitas vezes uma farsa. O mercado não pode ser deixado a si próprio, tem de ser regulado por desígnios nacionais (ou colectivos, a diversas escalas) que compete aos responsáveis político-administrativos executar, ouvidos os técnicos e os cidadãos.

Tu, Miguel, também escreveste sobre a arqueologia que apelidaste de low cost (Al madan nº 14). Disseste que no universo das empresas portuguesas de Arqueologia a procura do lucro sobrepõe-se à observação do interesse nacional da preservação do património, uma sobreposição facilitada pela demissão da tutela em fiscalizar a excelência dos seus resultados e dos seus técnicos.

Pergunto-te, então: será que o mercado está regulado, eliminando os profissionais incompetentes, como preconizava o Vítor Oliveira Jorge há oito anos atrás? Ou será que ainda continuam actuais as perguntas que ele lançava: quem nos paga, porque é que nos paga, quem é que nos está a utilizar e com que fim? Quem somos nós, para que é que servimos?

Será que a arqueologia de salvamento é aquilo que mais nos interessa, enquanto na qualidade de cidadãos interessados e preocupados com o património e não tanto como arqueólogos que se movimentam na arqueologia contratual? Afinal, quem somos nós e para que é que servimos?


Paulo Alexandre Monteiro